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A luz que vem da Ásia

05 de setembro de 2019

Caso raro, chegam praticamente ao mesmo tempo aos cinemas brasileiros dois novos filmes de diretores japoneses importantes: Vision, de Naomi Kawase, e O fim da viagem, o começo de tudo, de Kiyoshi Kurosawa. Em cada um deles, por coincidência, uma mulher realiza num país estrangeiro uma jornada de refundação pessoal: uma francesa no Japão no filme de Kawase, uma japonesa no Uzbequistão no de Kurosawa (que não tem parentesco algum com o mestre Akira).

Terminam aí as semelhanças, pois cada um dos dois cineastas tem suas preocupações próprias, seu estilo pessoal intransferível.

Em Vision, Jeanne (Juliette Binoche) é uma francesa de meia-idade que incursiona com uma jovem assistente nipônica pelas montanhas e florestas da região de Nara, no coração do Japão. Ela está à procura de uma erva prodigiosa chamada justamente Vision, que teria a faculdade de curar todas as dores físicas e psíquicas. Logo ficamos sabendo que os esporos dessa planta germinam a cada mil anos (997, para ser mais preciso) – e é isso que, segundo acredita Jeanne, está prestes a ocorrer.

 

 

Em sua busca meio científica, meio mística, a exploradora encontra a ajuda de um solitário lenhador e “guardião da floresta” (Masatoshi Nagase) e de uma velha eremita cega (Mari Natsuki) que preserva um conhecimento ancestral sobre ervas.

 

Natureza viva

Como em todos os seus filmes anteriores (com exceção de Esplendor, de ambientação mais urbana), a diretora mostra a natureza como uma força viva, metafísica, expressão de uma visão de mundo quase panteísta, ou talvez animista. Ela parece dizer, sem palavras, que há um espírito que anima cada ser vivo, animal ou planta.

Esse modo de olhar o mundo é o que o cinema de Kawase tem de mais belo e forte. Em Vision a floresta, com suas árvores multicentenárias altas como arranha-céus, exibe-se a nossos olhos como um organismo que pulsa e respira, metamorfoseando-se a cada estação do ano. A visão de conjunto, em planos aéreos extremamente abertos, se alterna harmoniosamente com o foco nos detalhes: uma folha, uma cigarra, a ranhura numa casca de árvore.

O problema é que frequentemente essa espiritualidade difusa, essa abertura generosa à diversidade misteriosa da vida, resvala para um certo misticismo new age, para um discurso frouxo de consolação, a um passo da autoajuda. O assombro cede lugar à crença, e os sentidos se fecham. Na articulação entre contemplação da natureza e drama humano, às vezes falta uma história mais consistente, outras vezes é a história que parece atrapalhar. De todo modo, é uma obra marcadamente pessoal, com momentos esplendorosos.

 

O fim da viagem

O novo filme de Kiyoshi Kurosawa, por sua vez, comprova a enorme versatilidade e liberdade criativa do cineasta, que transita de modo desenvolto pelo suspense, pelo terror e pela ficção científica, mas também é capaz de explorar o drama psicológico essencialmente realista, como é o caso neste O fim da viagem, o começo de tudo.

 

 

Aqui, a atmosfera de horror brota diretamente do real. Yoko (Atsuko Maeda), uma jovem repórter japonesa, vai com sua pequena equipe ao Uzbequistão para realizar um programa para uma série sobre viagens. Em meio a gravações inócuas ou frustrantes (nada é tão vistoso ou pitoresco como o programa gostaria de mostrar), ela se vê mergulhada numa solidão profunda, num país de língua e costumes que lhe são incompreensíveis, enquanto mantém conversas intermitentes de whatsapp com seu namorado em Tóquio.

Sucedem-se mal-entendidos, constrangimentos e perigos – em grande parte produzidos ou amplificados pela imaginação de Yoko, de cujo ponto de vista é narrado todo o filme. Em diversos momentos ela se perde em becos, corredores, subterrâneos e labirintos que se assemelham aos dos pesadelos. Entra em lotações sem saber explicar direito seu destino, é assediada por ambulantes e pedintes, esgueira-se pelas sombras para fugir de homens cuja intenção ignora.

O verdadeiro “tema” de O fim da viagem talvez seja justamente a subjetividade do olhar, ou seja, em que medida o que vemos é condicionado pelo que sentimos. Numa sequência reveladora, Yoko grava para o programa uma cena em que sacoleja e gira no ar num brinquedo radical de parque de diversões. Ela quase morre de pavor e desprazer, fica enjoada a ponto de vomitar. Mas, a pedido do diretor, repete sua saída do brinquedo com um sorriso nos lábios, dizendo: “Puxa, que experiência incrível”.

 

Olhar que transfigura

Mais importante que essa construção adulterada da imagem para o público externo (o espectador do programa) é a transfiguração do visível pela subjetividade de quem vê.

É o movimento interno da sensibilidade de Yoko que molda sua percepção do que está à sua volta. Depois de dias de frustração em lagos do interior, ruelas de Samarcanda e praças de Tashkent, ela parece florescer quando o diretor do programa lhe dá uma pequena câmera e permite que filme o que quiser num grande mercado. Essa libertação do olhar equivale a uma redescoberta do mundo; é um momento de êxtase, ainda que fugaz.

E o que acontece fora do quadro, em Tóquio, com o namorado da protagonista, acaba condicionando seu modo de interagir com o que a cerca. É, no fundo, uma história de amor em que um dos polos do par amoroso está ausente, mas condiciona o olhar do outro. Nesse quadro, a dupla entrada em cena do “Hino ao amor”, de Marguerite Monnot e Édith Piaf (na célebre versão japonesa de Tokiko Iwatani imortalizada pela cantora Fubuki Koshiji), vale por uma epifania. É quando Kurosawa se permite transcender o realismo e deixar o mundo ser recriado pelo amor de Yoko.