Idioma EN
Contraste

Cadernos de

Marc Ferrez

Agenda Pathé Frères

Fundo Família Ferrez
Acervo do Arquivo Nacional

 

As anotações dispersas e sucintas escritas na Agenda Pathé, 1918, o ano que marca o fim da Primeira Guerra Mundial, registram nomes de contatos, filmes vistos e encomendados e compromissos de Marc Ferrez em Paris, como empresário do setor cinematográfico. A Agenda é também testemunha da longa parceria comercial entre a família Ferrez e a Pathé Frères, iniciada em 1905.

Caderno digitalizado

 

Marc Ferrez. Agenda Pathé Frères

Código de Referência do Arquivo Nacional: BR_RJANRIO_FF_MF_1_0_02_3

Caderno digitalizado

Clique na imagem para abrir o caderno

Marc Ferrez. Agenda Pathé Frères

Código de Referência do Arquivo Nacional: BR_RJANRIO_FF_MF_1_0_02_3

Transcrição

Clique na imagem para abrir a transcrição
Marc Ferrez Agenda Pathé Frères - Transcrição

Imagens

Marc Ferrez e seus filhos construíram uma duradoura sociedade com a francesa Pathé, maior empresa cinematográfica mundial até a década de 1920. No Brasil, foram distribuidores exclusivos de seus filmes e seus cinemas exibiam, além do nome, o famoso galo, marca da empresa e símbolo da França.

Folha de rosto. Agenda Pathé Frères, 1918. Marc Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.
Cartão de publicidade da firma Marc Ferrez & Filhos. Rio de Janeiro, [1921]. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles
Interior da casa de Marc Ferrez, na rua Voluntários da Pátria, Botafogo. À direita, o galo símbolo da Pathé Frères. Rio de Janeiro, [1912]. Foto Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Fábrica da Pathé Frères. Joinville-le-Pont, França, 1917. Foto Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Carta da Pathé Frères à empresa Marc Ferrez & Filhos sobre a representação exclusiva dos filmes e aparelhos cinematográficos e a quebra em uma cláusula do contrato referente à venda de filmes. Paris, 29 de agosto de 1908. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

A curta duração dos filmes nas primeiras décadas do cinema, exigia dos exibidores uma programação complementar, que atraísse o público até as salas. Um dos artifícios para incrementar os programas era a projeção em lanterna de imagens fotográficas, acompanhadas de cartelas com avisos.

Clique na imagem para ampliá-la

O Cine Pathé exibia grandes sucessos de público estrelados por personagens que se destacaram na história do cinema, como Max Linder, Charles Chaplin e Tom Mix. Dentre os membros da família Ferrez, Júlio foi o único a produzir uma obra cinematográfica, atualmente desaparecida. Boa parte de seus filmes eram documentais, mas ele também criou ficções de sucesso, como a Mala Sinistra e Barcarola.

Equipe do filme de Mr. Law, com participação de Júlio Ferrez como fotógrafo. s.d. Foto Júlio Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Anúncio da programação do cinema Pathé, com destaque para os filmes do ator Max Linder, publicado no jornal Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 1917. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.
Charlie Chaplin na comédia Vida de cachorro, 1918. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.
Charlie Chaplin no filme Carlitos nas trincheiras, 1918. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.
Aspecto da fachada do cinema Pathé. Em exibição, o filme Tom Mix. Rio de Janeiro, 1919. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.
Atrizes do filme As semivirgens, adaptado do romance de Marcel Prévost, exibido pelo cinema Pathé. Rio de Janeiro, 1924. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

Atuando na distribuição e exibição cinematográfica, a família Ferrez estabeleceu uma vasta rede de contatos comerciais que incluía, além das companhias produtoras dos filmes, agentes, como A. Nevière, que intermediava negócios na França, clientes dos filmes no Brasil, como J. Staffa e renomados fabricantes de aparelhos como Contain Souza.

Clique na imagem para ampliá-la

Marc Ferrez: conector de mundos
Julio Lucchesi Moraes

 

Em seu aforístico livro de memórias, Rua de mão única, o filósofo alemão Walter Benjamin discorre sobre lugares, objetos e costumes da Berlim da virada do século. Num livro repleto de lembranças e mensagens cifradas, Benjamin constrói uma trama mutuamente pessoal e histórica. Esta, contudo, não é uma história de grandes fatos ou de grandes nomes: é aos detalhes, às banalidades quase que imperceptíveis aos olhos adultos, que o jovem menino volta sua atenção. Numa das mais famosas passagens da obra – onde o autor narra uma visita ao Tiergarten, o parque que ocupa a zona central da capital alemã –, vemo-lo atento não aos monumentos, não às escadarias: o que o captura são os aparentemente inexpressivos pedestais das estátuas e o pacato estacionamento de carruagens.1

Podemos, obviamente, interpretar tais especulações como simples subterfúgios poéticos, excentricidades cujo valor não vai além do plano biográfico. Podemos aí enxergar, contudo, uma das muitas indicações do filósofo na busca de uma nova maneira de ver (mas também fazer) a história. Nesta narrativa, o tempo não é nem homogêneo, nem vazio – ele está saturado de pulsão política. Trata-se de um tempo histórico encapsulado em artefatos, imagens e fatos riscados que guardam em si incríveis potencialidades da emancipação e da transformação política radical.2 Isso porque, para Benjamin, a história não avança de forma retilínea. Tampouco ela se desdobra em etapas, em degraus. É na imagem do salto de um tigre que o filósofo encontra a perfeita metáfora para seu conceito: no passado dormitam pulsantes possibilidades. Elas podem eclodir inesperadamente, com isso alterando não apenas nossa compreensão sobre o presente, mas, muito mais importante, dilatando inteiramente nossas possibilidades de futuros.
 

Agenda Pathé Frères, 1918, p. 28-29. Marc Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

 

Em que medida a lembrança do passeio em um parque se articula ao tema de nosso texto – a Agenda Pathé Fréres de 1918? Como uma ampla reflexão sobre a filosofia da história se conecta ao pequeno documento do arquivo Ferrez? Primeiramente, tanto em um (a agenda em meio ao arquivo Ferrez) quanto em outro caso (os carros estacionados rente ao parque) temos um objeto relativamente insignificante, um artefato tacanho e cercado de concorrentes grandiosos. À maneira dos pedestais do Tiergarten, a agenda – de início nada mais do que um caderno de notas escritas à mão com nomes, telefones e endereços – parece ter pouco a nos dizer. Seus traços rápidos não têm a imponência das fotografias que celebram a abertura da avenida Central. Não temos aí fotografias de membros da corte, paisagens majestosas do interior do país ou registros da população brasileira em sua diversidade étnica e racial. Mas, exatamente como os inexpressivos objetos de infância narrados por Walter Benjamin, encontramos no pequeno artefato um efetivo tesouro histórico. Por entre traços fugazes, a Agenda Pathé Fréres opera como um portal, uma passagem que nos permite não apenas a compreensão de aspectos e elementos de um tempo passado, mas – infinitamente mais promissor – a abertura de caminho para um novo olhar histórico. O que o documento permite é a sedimentação de uma outra história da cultura brasileira, delineando figuras, circuitos e relações que, embora presentes por séculos, permaneceram marginais, secundários.

O que este texto ambiciona, nesse sentido, é não exatamente uma análise exaustiva da referida agenda – um documento da coleção do arquivo Ferrez que (como muitos outros a ele semelhantes) foi ainda pouco explorado. Proponho agenciar este artefato com uma possibilidade historiográfica ampliada. Para tanto, destaco na pequena agenda: (a) seu acentuado poder de síntese, isto é, sua capacidade de concatenação exemplar. Quero com isso afirmar que dela podemos extrair informações relativas a distintos fenômenos históricos, culturais e econômicos do período; (b) as potencialidades de articulação desta fonte com um paradigma historiográfico alternativo, baseado menos nos sujeitos criadores e mais nas interconexões materiais, objetivas, econômicas firmadas por tais figuras.

Para além de mera reserva documental, depósito acrítico de informações, o arquivo Ferrez, sobretudo seu material contábil, administrativo etc., deve ser entendido como uma peça-chave neste projeto ampliado de re-escritura da história cultural, artística e midiática do Brasil.5 Em sua riqueza documental e na amplitude cronológica de seus diferentes fundos (que contêm registros de mais de cinco gerações), vejo-o como um verdadeiro manancial, a partir do qual pode emanar uma segunda história da cultura brasileira, uma narrativa que não se encerra no paradigma subjetivo. Ou seja: o que o arquivo nos permite enxergar é uma cultura que vai além do plano idealista (e ideológico) da narrativa de vida de sujeitos criadores (isto é, uma história que se preocupa apenas com os autores, os diretores, os artistas, as atrizes etc.). Esta segunda história não exatamente nega a importância ou valor de obras e artistas, mas os complexifica, uma vez que os posiciona dentro de tramas e interrelações cuja extensão vai além das exíguas circunscrições do(s) campo(s) artístico(s). A alternativa que proponho é a de uma chave interpretativa que permite – dentre outras coisas – diminuir o hiato entre arte e economia, a ponto de quase nulificar a (falsa) incongruência entre as duas.

Se documentos como a Agenda Pathé Fréres são usualmente relegados pelos historiadores da cultura, são justamente estes registros do funcionamento comercial, administrativo, que permitem a consolidação desta interpretação materialista dos setores culturais, artísticos e midiáticos que apresento neste texto. Documentos como este nos permitem reconstruir a vida de figuras-chave como Marc Ferrez. Isso porque, neste prisma amplificado, enxergamo-lo não apenas como o membro de uma família de fotógrafos, mas também como um importador de filmes e de materiais fotográficos, um receptor de encomendas, um proprietário de cinema, um fotógrafo retratista etc. Finalmente, tais documentos – indicativos do complexo novelo de relações pessoais e comerciais – permitem entender os caminhos materiais pelos quais os objetos culturais circularam pelo globo. Neste ponto, recorro a uma passagem de outra reflexão sobre o dia a dia da empresa Marc Ferrez & Filhos:

Típica firma familiar do começo do século XX, a MF&F possuía organização relativamente simples. Marc, o patriarca, dividia seu tempo entre estadias no Brasil e na Europa, onde realizava contatos com fornecedores e produtores. Ao que tudo indica, sua atuação esteve mais ligada aos estabelecimentos de contatos formais e institucionais – mediante a utilização de seu prestígio e renome no mercado brasileiro – do que como negociador direto, papel que caberia a uma série de agentes intermediários sediados no exterior. Já no escritório brasileiro, Luciano e Julio Ferrez dividiam as tarefas de gerência e contabilidade, respectivamente, embora também realizassem constantes viagens à Europa, ora por motivos familiares – já que parte da família lá morava – ora para encontros profissionais.6

 

Fábrica da Pathé Frères. Joinville-le-Pont, França, 1917. Foto Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

 

Penetrar o emaranhado de documentos técnicos de uma empresa como essa pode nos permitir, assim, compreender elementos bem mais amplos do modus operandi do primeiro cinema em um momento fundamental de sua história. Estamos em 1918 e este é um período de transição no setor. É a etapa final da Primeira Guerra mundial e certo senso de normalidade começa a ser sentido. No contexto setorial, o estrago ainda parece reversível: embora o conflito tenha desestabilizado fábricas e produtoras, permitindo grandes ganhos aos crescentes produtos norte-americanos no mercado global, permanece a esperança de que, ao término do conflito, o sistema econômico (e cultural) do globo volte a seu antigo ponto de equilíbrio, isto é, o eixo Paris-Londres. Mesmo que abaladas pelo evento (suas fábricas foram, inclusive, mobilizadas no esforço de guerra), as grandes produtoras francesas, como a Pathé e a Gaumont, continuam sendo as principais responsáveis pela produção de dezenas de milhares de filmes, cinejornais e registros documentais exibidos mundo afora. Embora os rostos de novos heróis se façam mais e mais presentes (Tom Mix, Lilian Gish, Charles Chaplin etc.), o galo (logomarca da Pathé) ainda é o soberano pelas telas do mundo. Da Austrália à Rússia, de Singapura a São Paulo, de Tunis ao Leste Europeu: onde quer que ferrovias, navios a vapor e postes elétricos cheguem, ali também estão os filmes da Pathé.

Há uma outra curiosidade neste momento de transição. Este é um período em que o fazer artístico cinematográfico ainda não está de todo desvencilhado dos ditames de seu predecessor, o teatro. Não são incomuns, por exemplo, os espetáculos híbridos, onde cinema e atrações de palco convivem. Adicionalmente, diversos dos cinemas do período são teatros readaptados para a nova mídia. Tudo isso sem falar na estrutura narrativa de filmes, sobremaneira vinculada ao melodrama teatral. Igualmente interessante é destacar que também o fazer econômico do suporte se encontra numa fase liminar, isto é, no ‘meio do caminho’ entre o modo moderno, racional, eficiente dos negócios do século XX, e o método tradicional, ainda fortemente centrado em relações pessoais. Assim, embora muitas das grandes produtoras europeias tivessem sucursais ou escritórios regionais nos quatro cantos do planeta (fenômeno que apenas se intensificaria com a verticalização hollywoodiana a partir dos anos 1920), a dinâmica em diversos mercados (e aí devemos incluir boa parte dos países latino-americanos, mas, além deles, outras zonas periféricas ao capitalismo, como África e Ásia) continuava funcionando pela modalidade tradicional. Em tais casos, a forma mais usual de negociação eram os contratos de distribuição e representação exclusiva firmados por produtoras com agentes locais relativamente independentes.

Representar localmente uma empresa como a Pathé ou a Gaumont, ser o fornecedor exclusivo de filmes e equipamentos cinematográficos das maiores empresas do período era, sem dúvida, uma excelente oportunidade comercial. Firmar um contrato de fornecimento de materiais destes seletos produtores implicava confiabilidade e, em grande medida, estabilidade financeira. Como hoje, o setor cinematográfico dos anos 1910 era fortemente afetado por flutuações (oscilações nos preços, variação dos gostos, preferência por certos gêneros etc.). Para uma distribuidora, portanto, era fundamental assegurar um fluxo volumoso e, acima de tudo, constante de materiais novos, permitindo o abastecimento ininterrupto de novos programas ao sequioso (e crescente) parque exibidor nacional. Tão importante quanto a constância, era fundamental, da mesma forma, a certeza de que os produtos adquiridos seriam de primeira qualidade – entendida aqui tanto ao plano técnico (filmes de boa qualidade e durabilidade etc.) quanto ao estético (isto é, adequação de temas e formatos às expectativas das audiências). Nestes dois quesitos, poucas empresas conseguiam rivalizar com a Pathé. Seja por sua capacidade produtiva, seja pelo prestígio de seus artistas, seja, ainda, pelo sucesso de suas estratégias de venda e de publicidade, conseguiu a empresa criar uma verdadeira aura ao redor de seus produtos. ‘Consumir’ um drama ou um cinejornal da empresa significava (tanto para as elites locais quanto para as emergentes classes médias urbanas) gozar de uma espécie de acesso remoto à França, a Paris, à Europa, ao mundo. Para os cidadãos de uma ainda jovem e hesitante república, numa época tão fortemente eurocêntrica e racista, e numa sociedade tão marcada pela herança colonial, os filmes da Pathé eram mais que meros objetos de consumo. O galo das vinhetas, das correspondências comerciais, do material publicitário não era, portanto, um simples mascote, mas uma resposta a uma necessidade de primeira ordem desta sociedade. A Pathé (e toda a ecologia a ela circundante) aplacava, assim, a necessidade de distinção, de demarcação simbólica, de acesso exclusivo a certos signos e cânones ‘civilizatórios’ da Primeira República.
 

O vice-presidente da República, Delfim Moreira, e os membros da sua Casa Militar, nas escadarias do cinema Pathé, após assistirem ao filme do Dr. Poncy sobre a construção, linha e trabalhos artísticos das Estradas de Ferro do Norte do Brasil. Rio de Janeiro, 1919. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

 

Contrariamente à sala de teatro (onde as classes sociais se diferenciam pelas barreiras físicas de camarotes, frisas etc.), o ambiente escuro da sala de projeção era (angustiantemente) democrático. Sob o eterno temor da ‘mistura de classes’, as tradicionais (mas, novamente, também as emergentes) famílias do Rio de Janeiro, de São Paulo e de outros nascentes centros urbanos do país precisam de salvaguardas simbólicas para desfrutar com tranquilidade da novidade francesa (o cinema). É justamente isto que a aura da Pathé assegurava: qualidade e primor estético, mas, igualmente (e talvez devamos dizer principalmente), a segurança do exclusivismo e da segregação. Isso porque apenas alguns cinemas (e aqui não se pode deixar de mencionar o recorte classista e geográfico das salas de exibição do período) eram abastecidos pelos rolos da companhia. Neste complexo processo de decantação e de depuração, o papel da Marc Ferrez & Filhos e de seu patriarca não pode ser diminuído. Se, deste lado do Atlântico, as elites precisavam de garantias e endosso simbólico, o mesmo ocorria do outro lado da negociação: também Charles Pathé, Léon Gaumont e os demais produtores do período tinham que ter certeza de que seus filmes chegariam ao mais seleto público, que os rolos não se perderiam durante seu translado, que os filmes não seriam copiados, falsificados ou danificados. Em suma: tanto nesta quanto naquela ponta exigia-se um verdadeiro especialista, um connoisseur de reputação e respeito, alguém simultaneamente capaz de (a) conhecer com intimidade os desejos e preferências de consumo das elites locais e (b) bem navegar o métier artístico (mas também técnico, comercial, prático) e cinematográfico europeu. Tanto um quanto o outro lado nutriam verdadeira aversão aos comerciantes aventureiros, aos empreendedores arrivistas. Tanto um quanto outro buscavam refúgio no capital simbólico de um refinado importador de filmes, preferencialmente alguém com credenciais aristocráticas. E este alguém era, obviamente, Marc Ferrez.

O que a Agenda Pathé Fréres de 1918 traz, portanto, é um registro documental do percurso de um intermediário cultural navegando por entre fornecedores, produtores e representantes comerciais. Além de endereços, telefones e contatos (em sua maioria, figuras baseadas em Paris), encontramos também diversas contas – muito provavelmente cálculos de custo por metragem/duração de filmes e programas. Encontramos ainda títulos e/ou temas de filmes ou cinejornais acompanhados de anotações pessoais de difícil leitura. Provavelmente, temos aí reflexões de Ferrez sobre a adequabilidade ou pertinência deste ou daquele produto para o mercado brasileiro, ponderações sobre a melhor maneira de embarcá-los, estudos sobre os mais vantajosos métodos de pagamento etc. Novamente, para além de seu conteúdo, o documento nos permite reconstruir a posição única Marc Ferrez. Não se trata, em absoluto, de desmerecer o conhecimento técnico do importador. Trata-se, paralelamente, de reconhecer a condição e a trajetória peculiar desta figura: comerciante franco-brasileiro, sem dúvida, mas também fotógrafo oficial do Império e da República, ex-retratista da corte, filho de um membro da Missão Francesa de 1816.

Entre a fotografia e o cinema, entre a Europa e o Brasil, entre os meios de circulação modernos e os antigos: o que a Agenda Pathé Fréres de 1918 nos permite ver é a dinâmica de um intermediador de circuitos culturais. Documentos como este – em sua simplicidade – nos possibilitam compreender as múltiplas funcionalidades sociais das artes. Por fim, temos aí um testemunho pulsante da complexidade dos papéis desempenhados pelos agentes distribuidores, estes verdadeiros conectores de mundos.

Localização de endereços anotados por Ferrez sobre Mapa de Paris de A. Vuillemin, Hachette, 1894

Por Julio Lucchesi


Clique para ampliar a imagem
Produtoras (produziam e/ou alugavam filmes)
1. Pathé Frères (escritório de locação)
2. Pathé Frères (serviços comerciais)
3. Gaumont
4. AGC
5. Ét. Aubert
6. Union-Éclair
7. Location Eclipse
Representantes / agentes comerciais [?]
8. Mmle. Louise Belliard
9. Mme. Championnet
10. Mme. Championnet [?]
11. Max Gluckman *
12. [Renée][?] André W. [?]
13. [nome não identificado]
14. Diamant Berger
15. M. Rolland
16. Mme Angèle [P?]elle[a?]se
17. Cont[a]ia-Souza**
18. John [Tijpel][?]
19. Pierre Chaine
* Representante da Pathé da Argentina
** Fabricante dos projetores e demais equipamentos da Pathé
Economista e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Foi pesquisador convidado da Universidade de Versailles Saint Quentin en Yvelines, da Goethe University Frankfurt e da Universidade de Manitoba. É autor de São Paulo capital artística: a cafeicultura e as artes na belle époque e Sociedades culturais, sociedades anônimas: distinção e massificação na economia da cultura brasileira.

 

 

Notas

1 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única – Infância berlinense: 1900. Tradução de J. Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 71-73.
2 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história: edição crítica. Organização e tradução de A. Müller e M. Seligmann-Silva. Notas de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2020, passim.
3 LUCCHESI MORAES, Julio. Notas para uma história econômica do cinema brasileiro: o caso da Marc Ferrez & Filhos (1907-1917). Revista da Cinemateca Brasileira, v. 2, p. 24-39, 2013, p. 24.
4 Idem, p. 27.
5 “Estima-se que, na Europa, o grupo chegou a deter de 25 a 30% do mercado de filmes e equipamentos. No Reino Unido, alcançou 40%, na Alemanha 50%, na Rússia 50% e mesmo nos Estados Unidos, já então um país bastante competitivo no segmento, a empresa chegou a abocanhar 60% do mercado”. LUCCHESI MORAES, Julio. Sociedades culturais, sociedades anônimas: distinção e massificação na economia da cultura brasileira. São Paulo: Alameda, 2020, p. 334.
6 ABEL, Richard. The Red Rooster Scare: Making Cinema American, 1900-1910. Berkeley: University of California Press, 1999, cap. 3.
7 LUCCHESI MORAES, Julio. Cinema in the borders of the world: economic reflections on Pathé and Gaumont film distribution in Latin America (1906-1915). Cahiers des Amériques Latines, v. 79, p. 137-153, 2015, p. 146.

Conteúdo relacionado

 

Este projeto é uma parceria entre o Arquivo Nacional e o Instituto Moreira Salles.