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Cadernos de

Marc Ferrez

[Anotações França]

Fundo Família Ferrez
Acervo do Arquivo Nacional

 

No caderno com etiqueta do Hotel Moderne, de Boulogne-sur-Mer, as anotações revelam aspectos do cotidiano de Marc Ferrez em seus últimos meses na Europa, antes do retorno definitivo ao Brasil em 1922. Em cerca de trinta páginas, o fotógrafo registra datas de aniversários de amigos e familiares, encomendas recebidas, receitas culinárias, listas de compras, seus gastos, além de fórmulas referentes à fotografia e vistas produzidas em diferentes locais da França.

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Marc Ferrez. [Anotações França]

Código de Referência do Arquivo Nacional: BR_RJANRIO_FF_MF_1_0_02_4

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Marc Ferrez. [Anotações França]

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Marc Ferrez [Anotações França]

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Marc Ferrez [Anotações França]

A família Ferrez

Marc Ferrez e os filhos, Júlio e Luciano, foram pródigos na produção de retratos da família, registros de âmbito privado dos encontros e viagens, no Brasil e na Europa, e do cotidiano dos Ferrez no Rio de Janeiro. Nestas fotografias, poses, roupas, olhares, cenários, enquadramentos e técnicas evidenciam comportamentos, habitus e o lugar social ocupado por eles, constituindo-se em fontes e objetos para a análise da autorrepresentação de três gerações de uma família de fotógrafos.

Marc Ferrez, sua nora, Claire Poncy Ferrez, os netos Gilberto e Eduardo e amigos. Suíça, julho de 1915. Foto de Júlio Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Claire Poncy Ferrez, seus filhos Gilberto e Eduardo e amigos. Orsières, Lac Champex, Suíça, 1915. Foto de Júlio Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Sala da casa da família Ferrez, rua Voluntários da Pátria, Botafogo. Rio de Janeiro, c. 1912. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Júlio Ferrez. Rio de Janeiro, c. 1912. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Claire Poncy Ferrez, seus filhos Gilberto e Eduardo e duas jovens. Rio de Janeiro, c. 1912. Foto Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

Viagens

Entre 1915 e 1922, período em que viveu na Europa, com uma passagem pelo Brasil, por alguns meses, entre 1920 e 1921, Marc Ferrez se dividiu entre Paris, os Alpes suíços, Vichy, a Côte d’Azur, dentre outros locais. Embora dedicado quase que integralmente aos negócios relacionados ao cinema, Ferrez manteve-se ativo como fotógrafo e em seu tempo livre experimentou a produção de fotografias coloridas, os autocromos.

Voyage au la Côte d'Azur [Viagem para a Côte d'Azur]. [Anotações França]. França, c. 1922. Marc Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.
Carqueiranne, estância turística na Provence. França, c. 1921. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Marecottes. Valois, Suíça, 1915. Foto Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Pinheiro, Hyères. França, c. 1921. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Cannes, Promenade de la Croisette. Cannes, França, c. 1921. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

Consumo, compras, encomendas

Em 1922, antes do retorno ao Brasil, Marc Ferrez recebeu toda a sorte de encomendas, como vestimentas para os filhos, netos e noras, incluindo espartilhos para Malia, esposa de Luciano. Utensílios domésticos estão na lista de Claire, esposa de Júlio. Sementes são solicitadas para a floricultura de Albert Rosenvald, amigo da família e representante da Fox Filmes no Brasil. Humberto Antunes, engenheiro, fotógrafo e interlocutor de longa data, e Emilio Brondi, amigo e gerente da Casa Marc Ferrez, encomendam material fotográfico.

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Marc Ferrez e a vida social das coisas
Maria do Carmo Rainho

 

A leitura das anotações de Marc Ferrez no caderno com etiqueta do Hotel Moderne, de Boulogne-sur-Mer, é uma espécie de viagem ao cotidiano do fotógrafo em seus últimos meses na França, antes do retorno definitivo ao Brasil, em julho de 1922. Estabelecido em Paris desde 1915, após a morte da esposa, Marie, no ano anterior, Ferrez estivera no Brasil por pouco mais de um ano entre fevereiro de 1920 e maio de 1921. Na sua derradeira estada na França, se dividiria entre Paris, Versailles, Berck e Boulogne-sur-Mer, conforme indicam seus gastos de viagens.

Em cerca de trinta páginas, das sessenta e seis que compõem o caderno, Ferrez registra datas de aniversários de amigos e familiares, encomendas recebidas, receitas culinárias; lista de compras e despesas diversas, os dias em que escreveu cartas, além de vistas produzidas em diferentes locais da França. Arquivar a própria vida, nos termos colocados por Philipe Artières,1 é prática comum a Ferrez, a seus filhos, Júlio e Luciano, e a seu neto, Gilberto, e se dá a ver na manutenção de documentos públicos e privados, como os cadernos de anotações, as fotografias organizadas nos álbuns de família, as correspondências pessoais, a ampla documentação da empresa Marc Ferrez e sua atuação nos ramos da fotografia e do cinema, perfazendo apenas no fundo Família Ferrez, doado ao Arquivo Nacional, em 2007, cerca de quarenta mil itens.

Reter, descartar, classificar, reclassificar. O processo de arquivamento da vida evidencia a percepção dos Ferrez sobre o lugar social que ocupavam e como este lugar exigia a produção e a guarda de documentos de naturezas diversas. Evidencia também uma intenção biográfica, a construção de uma narrativa cujas bases do roteiro nos são oferecidas tanto pela quantidade quanto pela variedade de documentos deixados à nossa disposição.

Adentrar esse universo do fotógrafo, contudo, obriga a lidar com aquilo que Pierre Bourdieu qualificou de ilusão biográfica,2 a crença na possibilidade de dominar a singularidade da vida de Marc Ferrez a partir desta documentação. Tentar reconstruir seus itinerários identificando as redes de relações, as sociabilidades, as parcerias comerciais, os modos como ele atuava na superfície social impõe, portanto, um denso exercício, que não será feito aqui.

Voltemos, então, ao nosso caderno. Como tratar este artefato que sobreviveu por cem anos, como tomá-lo como fonte e, sobretudo, como fazer dele um objeto de estudo? Em primeiro lugar, explorando suas propriedades e elementos intrínsecos: a materialidade, o estado de conservação, as marcas que conferem marcas específicas à memória, pois, como observa Meneses, a “simples durabilidade do artefato, que em princípio costuma ultrapassar a vida de seus produtores e usuários originais, já o torna apto a expressar o passado de forma profunda e sensorialmente convincente”3.

Temos aqui um caderno pequeno, retangular, de capa escura e bastante desgastada, com sinais de uso e rasuras, folhas de papel quadriculadas, algumas delas em branco. Não se trata de um diário, tampouco de uma agenda. Poucas datas são registradas. Não há carimbos nem marcas de papelaria ou gráfica. Nada além das anotações, o que não significa que “manusear” o caderno, saboreando suas páginas, seja pouco fascinante ou desafiador.

Nessa passagem de artefato a objeto de estudo, o caderno que, à primeira vista, não nos atrai do ponto de vista morfológico, vai revelando que, nas anotações, muitas delas fragmentadas, se inscrevem marcas de sujeitos e de acontecimentos que ultrapassam aquele que as produziu. De coisa dessubjetivada, o objeto ganha vida. Mas é preciso fazer perguntas, buscar um fio condutor. Começamos pela lista de aniversários. Ali estão as datas de nascimento dos membros da família – dos filhos Luciano e Júlio e suas esposas, respectivamente, Malia e Claire; dos netos Eduardo, Jean-Jean e Gilberto, e das sobrinhas-netas, Adelina e Olívia Martins – além do casamento de Júlio e Claire. As redes de sociabilidade também se revelam, com destaque para Achille Nevière – no caderno, apenas A. Neviére –, que, desde 1908, atuava como agente da empresa Marc Ferrez & Filhos na França, intermediando as relações com a Pathé Frères. Os Nevière, como indicado no caderno, são contemplados com as datas de “nascimento de Guy”, “do casamento dos Nevière”, do aniversário do “segundo filho de Nevière”, do “aniversário de A. Neviére” e da “festa da sra. Nevière”. Os aniversários de Palmira de Almeida, esposa do pintor e caricaturista Belmiro de Almeida, e da “sra. Montoux”, Josephine Marie Etournand, madrinha de Luciano Ferrez, também estão registrados. Fechando a lista, a data do banimento de d. Pedro II, 14 de novembro de 1889. Aqui cabe perguntar o que teria levado Ferrez a anotar um fato ocorrido havia mais de trinta anos. E por que o registro do banimento e não a data do nascimento ou da morte do imperador?

 

Listas de encomendas de Luciano Ferrez e sua esposa, Malia, de Emílio Brondi e de Alberto Rosenvald. [Anotações França]. França, c. 1922. Marc Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

 

Seguimos a leitura do caderno, folheando-o de modo aleatório. Vemos algumas receitas – da preparação de moluscos, brioche de batata, ovos moles sobre canapé, até uma receita para limpar prataria. A fórmula para saber o foco de uma objetiva. As encomendas dos amigos fotógrafos: materiais fotográficos – diversos tipos de chapas – solicitados por Humberto Antunes;4 esmalte e pó, para Emilio Brondi;5 as chapas, estereoscópios, lâmpadas e fundos, dentre outros itens, pedidos por Henrique Morize,6 com a indicação dos respectivos valores. As sementes de flores variadas e as publicações sobre jardinagem, além das etiquetas, para a floricultura de Albert Rosenvald, que atuava como diretor-gerente da Fox Filmes no Brasil. Como em outros cadernos de Ferrez, enumeram-se, ainda, as vistas produzidas em diferentes locais da França – Paris, Dampierre, Nice, Le Havre, Bagatelle, Marseille, Vichy, Hyères, Monte Carlo, Cannes, Grasse, Lyon, Bornes-la-Mimosas, Chantilly, Versailles, Boulogne-sur-Mer –, as últimas feitas por ele fora do Brasil, bem como aquilo que foi fotografado: de palácios, pontes e castelos a roseirais.

Dentre todas as anotações que integram o caderno, as listas de encomendas dos familiares de Ferrez, no Brasil, e os itens a serem comprados por ele para uso próprio nos atraem. Estas listas conformam uma espécie de inventário do consumo de três gerações dos Ferrez, possibilitando investigar o habitus de uma família burguesa, com origens na França, vivendo em um país em que a cultura e o gosto franceses predominavam desde o período imperial.

 

Marie Ferrez, ao piano, e Claire Poncy Ferrez. Rio de Janeiro, c. 1912. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

 

Uma das imagens da série de fotografias coloridas produzidas por Marc Ferrez na sua residência, em Botafogo, Rio de Janeiro, em 1912, revela como os artefatos operam na construção das subjetividades na vida social. Ferrez retrata a esposa Marie e a nora Claire. Os objetos domésticos e a decoração da sala – quadros nas paredes, fotografias em porta-retratos e bibelôs no móvel acima do piano – promovem uma conexão entre o passado e o presente, compondo uma biografia da família e de suas práticas culturais, a começar pela pintura, moldada na relação de Ferrez com o pai e o tio, Zéphirin e Marc, ambos chegados ao Brasil em 1817 e que se tornariam professores da Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil.

A presença do piano, tocado pela matriarca, ratifica o lugar social da família e um dos atributos esperados das mulheres das camadas mais altas – a educação musical e a prática daquele instrumento. Nas anotações de Marc em seu caderno também se dá a ver a relevância da música para os Ferrez. Ele registra os produtos a serem adquiridos: um fonógrafo e discos, “agulhas de cobre que duram vinte vezes”, um álbum para os discos. Preocupa-se em apontar a necessidade de “levar o diafragma da agulha para que entre até o início do braço”. E se mostra um entusiasta da ópera ao enumerar os discos a serem comprados: Celeste Aida, ária de Aida, de Giuseppe Verdi, em interpretação de Caruso; o IV ato de Otello, a “morte de Otelo”, também de Verdi, com Francesco Tamagno; I Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo, com Titta Ruffo e Vesti la giubba, da mesma ópera, cantada por Caruso. Em outra lista de compras está a Missa de Saint-Hubert em gravação da Pathé. Dentre as encomendas de Luciano, por sua vez, constam dez rolos de músicas clássicas para pianola.

Na fotografia revelam-se outros atributos exigidos das mulheres dos estratos mais elevados, como a correção das vestimentas e a elegância. Marie7 e Claire estão impecavelmente vestidas e penteadas, em suas longas roupas e com os cabelos presos em coque. É uma cena familiar em que a experimentação técnica – trata-se do primeiro trabalho de Ferrez com a fotografia colorida, utilizando as placas autocromos lançadas pelos irmãos Lumière em 1907 – não corresponde a uma informalidade esperável de um registro doméstico. Ao contrário: na composição há uma quase solenidade, compatível com a natureza inaugural dessas fotografias. Entende-se, nesse sentido, o cuidado na produção da aparência, na escolha das vestimentas.

A correção, termo caro aos manuais de etiqueta e aos jornais femininos desde o século XIX, também está presente. Enquanto Claire se apresenta com as formas vestimentares correspondentes à moda em vigor, a indumentária de Marie ressoa os estilos do século XIX, uma desatualização compatível e, por que não dizer, comum a uma mulher com mais de sessenta anos então. Ao retratar a esposa de costas, ao piano, e a nora, em pé, Ferrez exibe a indumentária de Claire nos mínimos detalhes, com suas diferentes cores e tecidos, as joias discretas, as luvas brancas delicadamente seguras pela mão esquerda. Destacam-se a pala de renda na blusa, com acabamento de fita em seda cor-de-rosa, as formas fluidas, sem marcar a cintura, a fenda na saia, que acentua a sobreposição de tecidos e o acabamento com uma faixa em cor mais escura, além do comprimento da cauda.

 

Marc Ferrez. 1919. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

 

A adequação vestimentar, o domínio das regras que regiam os usos das roupas, era uma exigência da qual Marc Ferrez também não parecia procurar escapar. Empresário da fotografia e do cinema, circulando entre cidades da Europa e do Brasil, não retornaria a este último sem um enxoval adquirido em Paris, conforme aponta nas listas de compras do caderno: “uma jaqueta meia-estação para almoço”, “três coletes brancos sem botão”, “um fraque”, “quarenta camisolas”, “camisas coloridas”, “ceroulas” e “dois trajes completos”, que consistiam, então, em um paletó, colete e calças compridas.

As encomendas dos filhos e noras de Ferrez apontam o desejo por uma grande variedade de mercadorias, de utensílios domésticos a roupas para crianças, na lista de Claire, passando por peças que revelam a intimidade, como os espartilhos solicitados por Malia. As listas também sugerem a valorização de marcas, como as fitas para máquinas de escrever Hamond Multiplex cor preta, para Luciano; os equipamentos e materiais fotográficos fabricados por Lefranc, Mallet, Lumière, Contain Souza, Guilleminot, e até o sabão Pompon.

 

Lista de encomendas de Claire Poncy Ferrez. [Anotações França]. França, c. 1922. Marc Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

 

Os pedidos das noras são particularmente interessantes para traçar um retrato do consumo dos Ferrez. Claire, a nora mais velha e, àquela altura, mãe de três filhos, solicita pratos de sobremesa, pratos de sopa, uma saladeira, meia dúzia de pequenos pratos redondos, uma molheira. Também encomenda aventais completos para camareira. Com exceção de meias femininas, “conforme a medida”, não há itens de uso pessoal. Formas para brioche aparecem na lista de Malia e na do próprio Ferrez; este também relaciona garfos para escargot. Malia encomenda “tapetes de entrada” medindo 2,52 x 2,60.

As roupas para as crianças da família – pelas idades indicadas, não apenas para os seus filhos – integram a lista de Claire, como o vestido pequeno para menina de dois anos e meio e o vestido pequeno, longo, para recém-nascido. Para os filhos, especificamente, ela solicita uma dúzia de meias pretas ou marrons para sapato tamanho 27, uma camisa com um metro de colarinho, seis pijamas para criança de treze anos, Gilberto; um mantô azul-escuro e um traje americano de marinheiro, fabricado em lã, para João Pedro, de oito anos.

 

Marc Ferrez e seus netos Gilberto, Eduardo e João Pedro Luciano, dito Jean, Ferrez. Rio de Janeiro, 1920. Foto de Júlio Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

 

Os trajes de marinheiro são uma espécie de uniforme para as crianças da família Ferrez, conforme se vê em diversas fotografias, incluindo a que reúne o fotógrafo e os três netos em 1920. Originária da Inglaterra, a vestimenta era vendida em Paris, desde as últimas décadas do século XIX, nas lojas de departamento e nas casas de origem britânica como Burberry, English Warehouse, Old England, dentre outras. Tratava-se de vestimenta onipresente no guarda-roupa dos meninos, geralmente usada até a entrada na adolescência, e constituía a primeira iniciativa de libertá-los das roupas demasiadamente cerimoniosas, que copiavam as vestimentas dos adultos, comuns nas cartes de visite das últimas décadas do oitocentos, ou excessivamente infantis, como os vestidos compridos. A popularização do traje de marinheiro, fabricado em diferentes tecidos, levou a que se oferecessem modelos inspirados nas marinhas de outros países, como Rússia e Escócia. O estilo americano do traje solicitado por Claire se disseminou a partir da Primeira Guerra.

As encomendas de Malia incluem peças de vestimentas em lã, como as anáguas, as calças de lã dos Pirineus e os robes em cor neutra, lilás ou marrom. O hábito de usar roupas de lã, mimetizando as práticas vestimentares da França e da Inglaterra, a despeito do clima no Rio de Janeiro, ainda era algo comum na cidade, conforme as colunas de moda dos jornais e revistas, e os anúncios de lojas de departamento como a Parc Royal. Os pedidos de Malia indicam, também, uma relação com as marcas. No ramo da higiene, destaca-se o Mineraline, fabricado pelo Dr. Baud, um talco que, em seus anúncios, visava se diferenciar dos similares com base vegetal, assegurando que era recomendado pelos médicos e acalmava as irritações da pele causadas pela transpiração, queimaduras solares e fricção das roupas8. Malia solicita, ainda, utensílios para manicure. Em seu caderno, Ferrez registra que todos devem ser adquiridos no estabelecimento de Vitry.9

Mas, dentre as encomendas da nora de Ferrez, a que mais chama a atenção são os espartilhos. Estão listados como dois espartilhos anatômicos, pequenos, com modelo parecido com aquele fornecido em outubro de 1919 ou janeiro de 1922, da marca Claverie. O pedido de Malia evidencia, para começar, uma naturalização da exposição da sua intimidade, considerando-se as características da peça. Pode-se conjecturar que a encomenda se deve ao fato de Ferrez não ser estranho ao universo da moda e, mais especificamente, ao da roupa branca, por conta dos negócios de Marie. A convivência entre Malia e Ferrez, entre os meses de junho de 1919 e fevereiro de 1920, quando a então noiva de Luciano, ainda desconhecida do futuro sogro, viaja à França, também pode ter colaborado para a construção dessa intimidade. Mas não esqueçamos que os espartilhos materializam regras de comportamento, o controle do corpo, as distinções de gênero, e carregam uma alta dose de erotismo.

O adjetivo “anatômico” associado à peça no caderno não passa despercebido. Artefato polêmico, envolto em camadas complexas de significados, o espartilho esteve, desde meados do século XIX, no alvo dos médicos, sobretudo os higienistas, que o condenavam pelos danos causados à saúde. No início do século XX, a reforma dos trajes femininos e a abolição da peça também pautavam os debates travados pelas feministas, as quais entendiam que a emancipação das mulheres passava pelo fim da constrição do corpo. Nesse contexto, foi sendo criado o que se denominava espartilhos científicos, conhecidos ainda como anatômicos, higiênicos, racionais. Recomendados por médicos que emprestavam seus nomes aos produtos, eram comercializados como peças confortáveis, de grande elasticidade e que não comprometiam a saúde, adequando-se aos estilos retos e fluidos das roupas nas décadas de 1910-1920, como as usadas por Malia em registro de sua viagem à França, com Luciano, em 1919.

 

Malia e Luciano Ferrez em viagem à Europa. 1919. Foto de Marc Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

 

Os espartilhos da Claverie eram voltados para um público das camadas médias e altas.10 Embora alguns modelos girassem em torno de oitenta francos, como o Corset Vogue, anunciado em 1921, os dois espartilhos da nora de Ferrez custaram 440 francos, revelando-se os itens mais caros das listas da família, incluindo a viagem de Marc para Versailles e refeição (150 francos) e a viagem para Boulogne-sur-Mer (cem francos). Perdem apenas para os estereoscópios e os casacos encomendados por Henrique Morize. Os espartilhos em questão são interessantes para se investigar como a hierarquia das aparências opera, como as distinções sociais se desvelam não apenas por aquilo que as pessoas mostram, mas pelo que escondem. É a diferença entre os gostos de luxo e os gostos de necessidade11.

No caderno que intitulamos Anotações França, os objetos nos dão a dimensão do cotidiano de Ferrez e, na mesma medida, possibilitam pensar em trocas materiais e simbólicas. Fazem emergir sociabilidades, gostos, práticas culturais, estratégias de produção da aparência e sentimentos, como a amizade nutrida pelos colegas fotógrafos, o carinho pelos netos, a atenção com os filhos e noras, que se revelam desde os cuidados em apontar com exatidão tudo aquilo que lhe foi solicitado, ou que intentava adquirir para presentear, até o ato mesmo da compra. Em sua relação com as coisas, na manutenção do hábito de registrar receitas, gastos, encomendas e compras, Ferrez nos lembra que os sujeitos se constituem e são constituídos pelos objetos, que precisam de bens para comunicar-se com os outros e para entender o que se passa ao seu redor. Como bem define Meneses,12 a biografia dos objetos introduz novo problema: a biografia das pessoas nos objetos.

Historiadora. Doutora em História (UFF), mestra em História Social da Cultura (Puc-Rio). Pesquisadora do Arquivo Nacional, atuando na difusão dos acervos institucionais. Curadora de exposições. Autora dos livros A cidade e a moda, 2002; Moda e revolução nos anos 1960, 2014; Retratos modernos (com Cláudia Heynemann), 2005.

Notas

1 ARTIÉRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, v. 21, p. 9-34, 1998.
2 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p. 183-191.
3 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público. Estudos Históricos, v. 21, p. 90, 1998.
4 Engenheiro, fotógrafo amador, vinculado à construção e administração de ferrovias. Em 1887, registrou, no sertão da Bahia, o meteorito Bendegó e os engenheiros encarregados de transportá-lo para o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. PRADILLA, Ileana. Marc Ferrez: uma cronologia da vida e da obra. Rio de Janeiro: IMS, 2019.
5 Trabalhou durante muitos anos com Ferrez, tendo atuado como gerente da Casa Marc Ferrez até 1912, quando abriu sua própria empresa de fotografia e cinema. PRADILLA, Ileana, op. cit.
6 Engenheiro, astrônomo e físico, foi sucessor de Luis Cruls na direção do Observatório Nacional. Integrou a Comissão Exploradora do Planalto Central (1892-1894), onde atuou também como fotógrafo; a Comissão de Demarcação dos Limites entre Brasil e Bolívia (1899); a Missão Cruls (1901). Em outubro de 1912, liderou uma comitiva de astrônomos a Passa-Quatro, Minas Gerais, para a observação do eclipse solar. Marc Ferrez o acompanhou nessa viagem. PRADILLA, Ileana, op. cit.
7 Marie não era estranha ao universo da moda. Em 1874, ano seguinte ao casamento com Marc Ferrez, ela e sua mãe, Pauline Caroline Lefebvre, passaram a dividir uma empresa que comercializava as chamadas “roupas brancas para senhoras”, na rua São José, no Centro do Rio de Janeiro. Conforme os anúncios publicados no Jornal do Commercio, nas décadas de 1870 e 1880, mercadorias como camisas, paletós, saias, camisas de dormir, pegnoirs, lenços, punhos, colarinhos e gravatas eram importadas da França, escolhidas pessoalmente por Pauline.
8 Le Matin, 12 de agosto de 1921, e Le Petit Parisien, 16 de junho de 1930. Disponível em: Gallica.bnf.fr. Acesso em: 10 nov. 2021.
9 Empresa criada no século XVIII e notabilizada pela qualidade na produção de instrumentos cirúrgicos e artigos de cutelaria. Em 1856, foi adquirida por Jules Thinet, inventor, entre outros produtos, da lâmina de barbear descartável. Disponível em: https://www.vitry.com/lhistoire-de-vitry/. Acesso em: 15 nov. 2021.
10 Dirigida por Auguste Claverie, ortopedista especializado em próteses, a empresa abriu suas portas em 1891, na Faubourg Saint-Martin, em Paris. Claverie se tornou um dos mais proeminentes comerciantes de Paris na virada do século XX, fabricando espartilhos sob medida, anunciados como peças confortáveis e de fino acabamento. Le Rire: journal humoristique, 11 de maio de 1901; Le Rire: journal humoristique, 21 de setembro de 1901; La Mode du Temps: supplément au journal Le Temps, 25 de junho de 1913; Le monde illustré, 28 de abril de 1917; La Femme de France, 18 de dezembro de 1921. Disponível em: Gallica.bnf.fr. Acesso em: 10 nov. 2021.
11 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2006, p. 168-169.
12 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de, op. cit., p. 93.

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Este projeto é uma parceria entre o Arquivo Nacional e o Instituto Moreira Salles.