Cadernos de
Marc Ferrez
[Inventário manuscrito de negativos]
Coleção Gilberto Ferrez
Acervo do Instituto Moreira Salles
O Inventário manuscrito de negativos, da coleção Gilberto Ferrez, revela o objetivo de Marc Ferrez de registrar e, em alguns casos, comentar seu trabalho como um dos mais importantes fotógrafos que atuaram no Brasil. Esse volume constitui, sem dúvida, um dos representantes dessa organização, embrião de uma preocupação pela conservação, preservação e salvaguarda de um patrimônio que começou a ser organizado pelo próprio Marc Ferrez a partir de 1873. Os negativos estão em caixas numeradas ordenadas por formato a exemplo das vistas 18 x 24 cm; chapas 24 x 30 cm; pequenos panoramas 15 x 30 cm, totalizando 126 caixas. Mas esse inventário transborda a intenção de arrolar uma atividade. Percorrer os apontamentos deste volume, pertencente ao acervo do Instituto Moreira Salles, é também apreender a capacidade que a fotografia possui em documentar eventos de natureza social e familiar, instrumentalizar campos da ciência, acompanhar transformações urbanas, contribuindo para a construção de uma imagem de país.
Caderno digitalizado
Marc Ferrez. Caderno sem título [Inventário manuscrito de negativos]
Código de Referência do Instituto Moreira Salles: 007CAD01
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Marc Ferrez. Caderno sem título [Inventário manuscrito de negativos]
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Retratos de família
O retrato produzido nos ateliês das grandes cidades contribuiu significativamente para a expansão da fotografia, principalmente entre uma classe social mais favorecida. Ferrez é um dos nomes consagrados nesse tipo de registro. Essas imagens de família, flagrantes de um cotidiano dos Ferrez em sua casa no bairro da Glória, sugerem um contraponto à fotografia posada nos salões e estúdios.
Grandes obras
Marc Ferrez representou com excelência a interação entre fotografia e obra pública. Nesse inventário, podemos perceber essa articulação entre o registro fotográfico e os levantamentos e estudos para abertura de estradas de ferro, comissões geológicas, trabalhos de colonização, entre outros. A documentação fotográfica tornou-se um item dentro dos processos de engenharia e comissões de exploração científica.
Grandes vistas
Inspiradas no paisagismo da pintura romântica, as fotografias de vistas desenvolveram uma linguagem própria, marcada, principalmente, pela nitidez e distribuição dos planos, compondo imagens que ganharam espaço nas exposições universais. De acordo com Sergio Burgi, “Ferrez foi o fotógrafo que mais se deslocou no país no século XIX. Não apenas fisicamente, mas também na fotografia”*. Registrou diferentes regiões do país procurando, para esses registros, criar e aperfeiçoar técnicas e equipamentos fotográficos.
Os grandes panoramas e vistas de Ferrez, com tamanhos variados 30 x 40 cm, 50 x 25 cm, 50 x 60 cm registraram pontes e viadutos da Estrada de Ferro Central do Brasil, a igreja da Candelária, a praia de Botafogo, vista do alto do Corcovado, vistas das minas de Ouro Preto, Estrada de Ferro Minas-Rio, evidenciando a diversidade de temas e localidades.
* MEZAROBBA, Glenda. Muito mais do que um fotógrafo. Revista Pesquisa FAPESP, Edição 281. jul. 2019. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/muito-mais-do-que-um-fotografo/
Manuscritos
Os inventários constituem-se instrumentos essenciais para a preservação dos bens culturais. São também uma forma de contar a história da fotografia a partir do próprio autor. Além da identificação dos negativos por tamanho, distribuídos por inúmeras caixas, este caderno traz uma relação de empregados da Casa Marc Ferrez & Cia. em que constam o fotógrafo Antônio Ferreira Jr; Emílio Brondi, gerente da firma; e Felícia, cozinheira da família, além de um apenso provavelmente de autoria de Gilberto Ferrez, com interessante listagem manuscrita de fotógrafos contemporâneos de Marc Ferrez.
Conhecer Marc Ferrez por seu inventário de negativos
Maria Elizabeth Brêa Monteiro
É notória a importância da produção de Marc Ferrez para a história da cultura visual dos séculos XIX e XX. Autor de uma obra capital de registros visuais do Brasil e, em especial, do Rio de Janeiro, Ferrez é, sem dúvida, um dos principais fotógrafos que atuaram no país. Poucos foram os aspectos e os acontecimentos que deixaram de receber seu olhar. Responsável por registar a família imperial, especializou-se em grandes panorâmicas e em imagens que levaram a fotografia brasileira a um espaço de destaque nas exposições universais, onde um novo país dos trópicos procurava exibir suas riquezas e suas conquistas civilizatórias.1
Ferrez desempenhou papel de relevo para a expansão da produção e consumo da fotografia. Embora a fotografia tenha sido utilizada como instrumento de documentação, sendo o retrato o gênero fotográfico mais difundido nos primórdios da técnica, produzido nos ateliês – os “salões de pose” – das grandes cidades, em função do interesse de uma clientela que se ampliava cada vez mais desejosa de representação, Ferrez, assim como outros fotógrafos, tornou a atividade fotográfica itinerante, percorrendo o interior do Brasil, enfrentando longas distâncias, carregando equipamentos pesados e vulneráveis às condições das regiões do hinterland brasileiro.
As paisagens e imagens panorâmicas premiadas em exposições nacionais e internacionais em que representou o Brasil revelam uma ligação do fotógrafo com as atividades culturais e científicas e um interesse pelos avanços tecnológicos, experimentando transformações e inovações na produção fotográfica. Exemplar é o aperfeiçoamento do aparelho inventado e construído por David Hunter Brandon para que fosse possível realizar chapas de vidro de 40 x 110 cm, permitindo, assim, imagens panorâmicas.
Marc Ferrez foi um dos fotógrafos que mais produziu imagens e álbuns de obras de engenharia e para as empresas férreas, como a Estrada de Ferro Minas e Rio (1881-1884), Estrada de Ferro Príncipe Grão Pará (1882); Estrada de Ferro do Paraná (1880-1884); Estrada de Ferro do Corcovado (1884); Estrada de Ferro D. Thereza Christina (1884) e a Great Southern Railway (1889). Ferrez também realizou serviço fotográfico para a Estrada de Ferro D. Pedro II. A fotografia como registro de obras públicas teve destaque nos trabalhos de engenharia da época, a exemplo das obras do novo abastecimento de água do Rio de Janeiro, da canalização provisória do rio São Pedro, dos serviços de documentação fotográfica para a Comissão Construtora da Nova Capital mineira, ou da reforma urbana do Rio de Janeiro. Esses trabalhos operam como registro do programa arquitetônico, do processo de construção, de técnicas de restauro ou de promoção do próprio negócio, e não apenas como imagens eventuais de “homens trabalhando” ou fotos de inauguração.2
Esse recurso se verifica nas atividades da Comissão de Linhas Estratégicas, em que havia um cuidado com a organização e preservação dos registros dos trabalhos levados a efeito. A publicação de relatórios, álbuns fotográficos, entre outros elementos, revela a importância e a intenção em preservar a memória dessas iniciativas e também dar visibilidade às ações por vezes revestidas de uma tenacidade, característica atribuída, com frequência, a Rondon.3
A fotografia adquire uma função pragmática que se destaca não exatamente como “documento histórico”, mas como evidência experimental que pode ser apresentada nos debates científicos, em novos processos construtivos, nos usos de materiais, além de uma ferramenta importante para o reconhecimento de sítios e levantamentos topográficos. A imagem é incluída no contexto do debate sobre a objetividade nos métodos experimentais e considerada a melhor forma de representação dos resultados científicos. A fotografia mostrou-se, assim, uma técnica conveniente a diversos conhecimentos científicos e práticas profissionais, como o registro visual da construção e o levantamento topográfico no século XIX.4
Maria Inez Turazzi,5 em artigo para a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de 1998 dedicada à fotografia, menciona que as imagens de Ferrez, e o trabalho de identificação, inventário e preservação dos monumentos históricos e artísticos nacionais contribuíram para a noção do que hoje se chama patrimônio. Penso, assim, que o inventário que ora é reproduzido tem uma participação ativa na construção e testemunho da noção de patrimônio e memória.
Neste inventário de negativos pertencente ao acervo do Instituto Moreira Salles, verifica-se o grande número e a variedade de registros listados por Ferrez. São caixas de chapas 18 x 24 cm com indicações de registros produzidos em diversos locais do Rio de Janeiro (capital e outras cidades), São Paulo (capital e interior), fotos de Pedro II, navios, tipos de índios Cayapó, Bororo, positivos a serem feitos, incluindo negativos de índios Botocudos e retratos de índios com escala; 11 caixas de chapas 24 x 30 cm com imagens de locais/temas como avenida Central, Teatro Municipal, Glória, Santa Teresa, Petrópolis, navios, hotéis, Santos, vistas de Ouro Preto, vistas de Paquetá, reproduções de quadros, colheita de café, Academia de Belas Artes, pinturas da Igreja da Candelária, Estrada de Ferro do Corcovado, fazenda de café e terreiro de café, lavagem de ouro, interior de mina, e retratos (Benjamin Constant, José Bonifácio, Floriano Peixoto).
Os pequenos panoramas (15 x 30 cm) e panoramas médios registram vistas de diversos locais do Rio de Janeiro, Paquetá, caminho velho de Petrópolis, São Paulo, Santos, estabelecimentos como hotéis, um carro de boi ou um jequitibá, entre tantas outras cenas que chamavam a atenção do fotógrafo.
As vistas de 30 x 40 cm e 50 x 60 cm mostram locais como a Igreja da Candelária (inclusive o interior), Correios (rua 1º de Março), Palácio Monroe, Teatro Municipal, Supremo Tribunal, edifício do jornal O País, Associação dos Empregados do Comércio, Clube dos Engenheiros, largo da Carioca, prédio da empresa Theodore Wille, Casa da Moeda, Escola Politécnica, largo de São Francisco, Pinheiros do Paraná, Mina de Topázios. Muitas se referem a prédios públicos da avenida Central, Igreja de São Francisco, Caixa de Amortização, Imprensa Nacional, São Paulo, Petrópolis, Teresópolis, Estrada de Ferro Central do Brasil, abastecimento de água, colheita de café, diversas igrejas, Copacabana, Estrada de Ferro do Corcovado, Museu Nacional, Palácio Monroe e a Escola Politécnica do Largo de São Francisco. Os grandes panoramas de 50 x 25 cm registram as obras da Estrada de Ferro Central do Brasil, pontes, grandes vistas, obras de abastecimento de água. As mais de trinta caixas com chapas 24 x 30 cm revelam, além de edifícios públicos como a Casa da Moeda e o Real Gabinete Português de Leitura, obras relacionadas às diversas estradas de ferro gravadas por Ferrez, como o Porto Novo do Cunha na Estrada de Ferro Leopoldina, sendo seis chapas da Estrada de Ferro Cantagalo registrando o Tanque do Juca Pena, Registro, ponte de madeira sobre o rio Pomba, túnel, ponte Guarany e ponte Piranga.
O inventário traz ainda anotações manuscritas sobre as condições de alguns materiais e comentários qualificando, por exemplo, como “ótimos” os positivos para fazer contra-tipo da igreja da Bahia, ou o largo da Carioca (antigo), ou as três vistas do alto do Corcovado. Constam também nesse volume várias anotações a lápis e uma lista com nomes de fotógrafos como Victor Frond, Militão Augusto de Azevedo, Albert Frisch, datas, locais. Em alguns casos, figura o número de fotos.
Perquirir esse volumoso inventário de negativos de Marc Ferrez permite acompanhar as transformações físicas e tecnológicas de um país em movimento e em “reconstrução”, que procurava assinalar sua opção por um modelo civilizatório de matriz marcadamente europeia. Ao mesmo tempo, as chapas e os negativos conservados em mais de uma centena de caixas enunciam a forma de representação do mundo de Ferrez, o que nos guia a conhecer um pouco de sua sensibilidade e interesses.
Em paralelo, pensar essa variedade de registros e dimensões leva obrigatoriamente a considerar as inovações da produção fotográfica empreendidas por Ferrez em termos de equipamentos, técnicas e materiais. A evolução da técnica fotográfica à qual ele se dedicou e para a qual teve uma contribuição decisiva talvez o tenha levado a se notabilizar, de fato, nos panoramas e nas estereoscopias. De acordo com Lissovsky, Ferrez “maneja a estereoscopia com maestria. Os volumes e pontos de interesse estão bem delimitados e espaçados, os planos próximos mais compactados entre si que os distantes – a composição de uma boa estereoscopia remete mais à escultura e ao diorama que à pintura. E há quase sempre um elemento a nos surpreender, entrando em quadro junto ao espectador”.6
Além das grandes obras, Ferrez fez registros originais de grupos indígenas, em especial os Botocudos do sul da Bahia, quando integrou a Comissão Geológica do Império, sob comando do geógrafo e geólogo Charles Frederick Hartt. Despidas de qualquer caráter antropológico, as imagens dos indígenas evidenciavam não só o aspecto exótico que alimentava o gabinete de curiosidade do mundo europeu sobre os primitivos, como revelavam uma primeira inserção da fotografia de indígenas nas expedições científicas como objeto da natureza a ser mensurado e dominado. Mesmo as fotografias feitas em estúdio não se descuidavam de tentar reproduzir um habitat inóspito onde essas populações habitavam. Os registros de Marc Ferrez apresentados na Exposição Antropológica de 1882 no Museu Nacional do Rio de Janeiro são um exemplo dessa visão dos indígenas como seres pretéritos.7 Muitas dessas imagens compuseram álbuns comercializados na Europa, aguçando a curiosidade e, não raro, revelando um tratamento abusivo a esses fotografados.8
Mas dentre as inúmeras caixas de negativos e chapas de vidro listadas neste inventário, nos chama a atenção uma caixa de retratos de família, a caixa 123, que revela momentos cotidianos, domésticos. Essas imagens em nada lembram aquelas de estúdio com suas colunas, cortinas, estatuetas e tantos outros elementos que procuravam compor um cenário apropriado. Nem tampouco os fotografados estão em posições formais, muito comum nos retratos da época. O que se nota são flagrantes cotidianos como a foto do seu filho Lucien brincando ou ainda de Lucien com seu cachorro Peri e a cozinheira Felícia Maria da Conceição, na casa de Marc Ferrez, na rua Pedro Américo, no bairro da Glória, no Rio de Janeiro.
O conjunto inventariado nesse volume não revela apenas uma experiência profissional e capacidade inventiva de soluções técnicas. Enuncia a construção de uma cultura fotográfica que se manifesta pela diversidade de temas e locais registrados, dos arranjos em álbuns e coleções, moldando em algum grau o olhar de uma sociedade sobre si mesma. Nas palavras de Maria Inez Turazzi,
As imagens fotográficas constituem um dos meios mais criativos e eficazes para a identificação, o reconhecimento e a representação das singularidades nacionais de uma cultura, tanto quanto uma das formas de expressão da sua própria existência. Por sua vez, o modo como a fotografia participa da construção imaginária do nacional também define a originalidade de uma cultura fotográfica: seja através da atividade de documentação visual dos elementos concretos dessa construção, seja através da utilização e combinação das referências simbólicas e materiais da identidade cultural de um povo.9
Marc Ferrez talvez melhor traduza o entendimento da fotografia como sistema integrado, abrangendo desde a produção, com todas as etapas que lhe são pertinentes, à difusão visual e do pensamento. Para ele, o campo da fotografia abrangia a foto simultaneamente como objeto fotográfico e como valorização da cultura material inerente ao campo das relações sociais.
Mestre em História Política (UERJ), pesquisadora do Arquivo Nacional, atuando na difusão dos acervos institucionais. Editora do site Exposições Virtuais do Arquivo Nacional. Integra a Comissão de Avaliação de Acervos Privados do Conselho Nacional de Arquivos.
Notas
1 MAUAD, Ana Maria. Entre retratos e paisagens: modos de ver e representar no Brasil oitocentista. Studium, (15), 3–43, 2019. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/studium/article/view/11764/7706
2 OLIVEIRA, Eduardo Romero. Vistas fotográficas das ferrovias: a produção de registros de obra pública no Brasil do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 695-723, jul./set. 2018.
3 Ver: O uso da fotografia na defesa do Serviço de Proteção aos Índios no início da década de 30. Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?p=11970
4 OLIVEIRA, Eduardo Romero, op. cit., p. 708.
5 TURAZZI, Maria Inez. Uma cultura fotográfica. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, dossiê Fotografia, Rio de Janeiro, n. 27, p. 6-15, 1998.
6 LISSOVSKY, Mauricio. Ócio e cinema na fotografia de Marc Ferrez. Galáxia (São Paulo, online), ISSN 1982-2553, n. 45, p. 76-92, set./dez. 2020, p. 85. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1982-25532020347859
7 ANDERMANN, Jens. Espetáculos da diferença: a Exposição Antropológica Brasileira de 1882. Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 128-170, dez. 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2237-101X005009006
8 TACCA, Fernando de. O índio na fotografia brasileira: incursões sobre a imagem e o meio. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 191-223, jan./mar. 2011.
9 TURAZZI, Maria Inez, op. cit., p. 10.
No IMS
No Arquivo Nacional
Este projeto é uma parceria entre o Arquivo Nacional e o Instituto Moreira Salles.