Manusear itens de um arquivo pessoal, principalmente de cunho literário, permite vislumbrar em certos documentos um rastro deixado pelos antigos proprietários. São intervenções que variam entre correções, rasuras, rabiscos e anotações de melhoria, comumente encontradas em manuscritos de um romance ou de um poema, mas que também podem ser observadas, por exemplo, em fac-símiles de recortes de jornais e revistas.
Um grande volume desses recortes está sob a guarda da área de Literatura do Instituto Moreira Salles. São centenas de artigos, reportagens, matérias jornalísticas e, principalmente, crônicas, sobretudo as publicadas ao longo das décadas de 1940, 1950 e 1960, período considerado o mais rico do gênero. Graças a autores como Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz e Otto Lara Resende, para destacar apenas três nomes do acervo do IMS, esses documentos não foram descartados.
O pesquisador que se debruçar com entusiasmo sobre eles notará aqui e ali a mão desses escritores – ora rasurando, ora corrigindo e alterando frases ou inserindo novos vocábulos –, interferências que, normalmente feitas a caneta, não deixam de refletir em seus traços o desejo constante de aperfeiçoamento do texto, muitas vezes recém-publicado.
Será que, ao burilar tantas vezes as crônicas, esses autores tinham como impulso principal o desejo de vê-las reunidas num suporte mais definitivo como o livro? É bem provável.
Recortes de importantes jornais e revistas, principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo, tais como Diário Carioca, Correio da Manhã, Folha de S. Paulo e O Cruzeiro, estão disponíveis à consulta pela internet. O Portal da Crônica Brasileira, por exemplo, é um celeiro para quem deseja compreender melhor o processo criativo desses autores. As “páginas recobertas de rabiscos e garranchos” são a matéria-prima ideal da crítica genética, como notou Humberto Werneck em “A arte de despiorar”, publicado na seção Rés do Chão do mesmo site.
Mergulho no arquivo
Alguns recortes garimpados nos arquivos do IMS evidenciam a interação dos autores com seus textos. O primeiro destaque é a crônica “Não escrevam”, escrita para a seção Última Página da revista O Cruzeiro de 18 de maio de 1946, na qual Rachel de Queiroz intervém, já no primeiro parágrafo, anulando a expressão “moças que sentem em si a vocação...”, e substituindo-a, com tinta escura à margem esquerda do documento, por “moças que trazem dentro do peito a vocação”.
Outras intervenções se veem ao longo da crônica, antes de chegar às linhas finais, quando a autora faz o último retoque, substituindo a expressão em francês temps perdue pela tradução “o tempo perdido”, à margem do texto.
Paulo Mendes Campos, ao dar vida a um tipo original em “Um boêmio antigo”, crônica publicada na revista Manchete, de 26 de dezembro de 1959, parece se preocupar, já no primeiro parágrafo, em ressaltar as “ideias” de seu personagem que, além de “compassadas”, como consta do texto publicado, são “figurativas”, acrescenta à margem do documento. E, logo adiante, inclui a caneta o adjetivo “abstratas” ao se referir às suas próprias ideias.
Também de Paulo Mendes Campos, a crônica publicada originalmente na coluna Primeiro Plano, do Diário Carioca de 18 de novembro de 1951, possui rasuras e anotações manuscritas que alteram o texto original. Tais intervenções serão aproveitadas em uma nova versão, publicada na revista Manchete de 17 de outubro de 1953 sob o título “Verão”.
E, finalmente, de Otto Lara Resende, a crônica “O sax e o saque”, publicada na Folha de S. Paulo de 9 de novembro de 1992, pouco antes de sua morte em 28 de dezembro do mesmo ano, em que se vê retoque do autor no segundo parágrafo:

Katya de Moraes, integrante da área de Literatura do Instituto Moreira Salles, é bibliotecária e editora do Portal da Crônica Brasileira.
