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‘Bleu blanc rouge’

26 de agosto de 2020

Folhas soltas com definições de vinhos associadas à poesia ou às artes, encontradas no arquivo de Paulo Mendes Campos, sugerem que ele seguia o conselho de Baudelaire no poema em prosa intitulado “Embriagai-vos”. “Enivrez-vous”, no original, consta da seção Le Spleen de Paris e convoca o leitor a se embriagar para não sentir o horrível fardo do tempo que o arrasta à terra. É preciso estar sempre bêbado, clama o poeta francês. Mas, de quê? pergunta ele no segundo dos três parágrafos do texto: “De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha” – responde ele mesmo.

Os dois primeiros elementos – vinho e poesia – recheiam as definições de Paulo Mendes Campos. O que não se sabe é por que ele usou canetas de cores diferentes em cada frase. Depurava o texto, como se pode constatar nas diferentes versões aqui apresentadas. Planejava efeito visual em uma possível publicação? Então, por que já nesse momento de elaboração aplicava o colorido? Não seria mais lógico tratar disso quando desse o texto por terminado?

A primeira página da versão 4 de "Bleu blanc rouge". Escritor usou canetas de cores diferentes para cada vinho. Acervo Paulo Mendes Campos/ IMS

 

Deleitava-se – pode-se pensar. Estava aposentado como técnico da Empresa Brasileira de Notícias, antiga Agência Nacional e hoje Agência Brasil, havia pouco tempo e, certamente tomando um bom vinho, sem abandonar o fiel uísque, podia se dedicar à realização do que lhe viesse à cabeça, inclusive colorir frases.

Foi como diletante, no melhor sentido do termo, que nessa mesma época ele começou a estruturar um jornalzinho de vinte edições, com oito colunas cada, publicado sob o título de Diário da Tarde. Para isso, pinçou notas ou esboços de seus mais de 50 cadernos, coletou textos já publicados na imprensa e compôs, entre outros, o "Bleu blanc rouge", referido anteriormente neste site.

O resultado é um livro saboroso na sua variedade e especialmente rico nas escolhas dos ensaios que abrem cada edição. Os textos vão do coloquial ao erudito em segundos, mas daquele erudito próprio de Paulo Mendes Campos: sem qualquer pose. “Este livro pode ser folheado num lindo dia de chuva, à falta duma boa pilha de revistas antigas” – escreveu como primeira epígrafe, reproduzida nas edições de 1981 (Civilização Brasileira/Massao Ohno), na de 2014 (Companhia das Letras), e na versão em tabloide com que o Instituto Moreira Salles, em 2013, pretendeu, do ponto de vista gráfico, dar formato mais próximo ao, quem sabe, sonhado pelo autor. O “Bleu blanc rouge” entrou na seção “Grafite” da 19ª edição do Diário da Tarde, revelando um enófilo de reconhecida erudição desengomada.

Nos originais, ele anotou “Noel 79”, o que significa que o fez no Natal de 1979. Sem pretender analisar as variantes em cada versão, é impossível deixar de perceber as mudanças ao longo da composição. Como o texto é todo em francês, fica o leitor que desconhece a língua sem compreender o significado completo do conteúdo, mas certamente impregnado da sonoridade dos nomes e das sugestões, seja dos vinhos, seja dos autores/artistas a que o autor os associa.

O fato de o texto de quarenta linhas ter sido publicado em letra de forma, em todas as edições, dificulta a identificação das referências literárias que, em letra comum, as diferenciariam com o uso de aspas em títulos de poemas e itálico nos títulos de livros ou obras de arte, em geral.

Nas duas frases de abertura, por exemplo, é importante saber que um Meursault intenso evoca a “Balade des dames du temps jadis”, em que o poeta François Villon, depois de louvar mulheres lendárias como Heloísa, a que amou Abelardo e que depois da separação entrou para um convento, ou Joana d’Arc, entre outras, encerra cada uma das quatro estrofes com o refrão “Mas onde estão as neves de outrora?” [Mais où sont les neiges d’antan?].

Curioso que, no manuscrito, o autor escreve “la syntaxe géante de Rabelais”, mas na versão publicada elimina o “gigante”. Deixa apenas “a sintaxe de Rabelais”, o francês autor do Pantagruel, de 1532. Quem não leu essa obra ou a seguinte, Gargantua, dificilmente deixará de conhecer o aforismo a ele atribuído e muito popular entre nós: “O hábito não faz o monge”.

A segunda página da mesma versão do texto. Acervo Paulo Mendes Campos/ IMS

 

O mais conhecido Saint-Émilion é relacionado ao deus do vinho, a quem Pierre de Ronsard, contemporâneo de Rabelais, dedicou o “Hino de Baco” [“L’Hymne de Bacchus”]. Fascinado pelos rituais de adoração ao deus romano, Ronsard refletiu toda a volúpia da festa no seu poema “Les Bacchanales”, dando origem ao termo bacanal, como passamos a chamar as festas de orgia sexual. O poema “Um fantasma” [“Un fantôme”], de Baudelaire, com seu terror de “Nos subterrâneos de sombra e poeira/ Onde o Destino já me relegou”, marca o Chablis nervoso, enquanto um Bourgogne de boa casta combina com a descendência artística de Rodin, considerado o pai da escultura moderna.

Em algum momento da composição de “Bleu blanc rouge” as crianças de Renoir foram flor [la fleur], conforme se vê no manuscrito, mas ao final, o cronista/poeta optou por comparar um Malvoisie delicado às crianças que o pintor francês imortalizou. Quem não lembra da famosíssima tela Rosa e azul (ou As meninas Cahen d’Anvers), que integra o acervo do MASP? Próximo ao Malvoisie segue-se o Médoc aromatizado, que faz lembrar o azul de Mallarmé no antológico poema “L’Azur” que, no Brasil, teve tradução de Augusto de Campos. Os primeiros versos falam do sofrimento estéril da dor em que o poeta sente a “serena ironia” do azul. Hanté, ou tomado, possuído pela cor, o brado do nome “azul” ressoa quatro vezes, ao final: “Je suis hanté. L’Azur! L’Azur! L’Azur! L’Azur!”.

A languidez de Paul Verlaine, provavelmente evocação do poema “Lassidão” [“Lassitude”], “Sê lânguida, adormece-me com os teus afagos”, na tradução de Fernando Pinto do Amaral, é associada a um frutado Beaujolais, enquanto um Château-Chalon é tão misterioso quanto o amarelo de Van Gogh – com possível extensão a Les amours jaunes, único livro de poesia de Tristan Corbière (1845-1875). Não terá sido por acaso que o autor usou aqui caneta amarela. Divertia-se com esses pequenos prazeres visuais.

Paulo Mendes Campos lançou mão de absoluta liberdade para evocar poemas, ou apenas um elemento de um poema, uma peça musical, sem qualquer preocupação de distinguir títulos de nomes comuns. São interrelações sutis e sonoras, sugestões literárias, de modo que o cronista é ao mesmo tempo o poeta de “Bleu blanc rouge”.

Só assim se entende que um Sauterne encorpado evoca o licor a que se refere Rimbaud em “Uma estação no inferno”, quando o poeta, ao se sentir injustamente insultado, responde a seus acusadores dizendo-lhes que eles beberam o licor da fábrica de satã.

De qualquer maneira, nada tão devorador quanto um Cassis que lembra o “Lamento de fim de tarde” [“Complainte de la fin de journée”] de Jules Laforgue, poeta de expressão francesa nascido em Montevidéu. Bem diferente de um champanhe, tão inebriante como o Clair de lune de Claude Debussy.

Nem só de poemas são feitas as associações de Paulo Mendes Campos. Podem igualmente se estender às artes plásticas. Assim, a elegância de um Saint-Julien remete ao fauvismo que, no início do século XX, privilegiava a cor pura e de que Henri Matisse foi dos mais talentosos representantes, ao lado de Picasso e Marcel Duchamp. Nenhuma relação com o poema “Pobre Jean” [“Pauvre Jean”], de Jean Cocteau, ou com as rendas usadas pelas personagens de Marcel Proust no seu Em busca do tempo perdido, tão sintonizadas com um Saumur-Mousseux .

As comparações em "Bleu blanc rouge" jamais são óbvias, e a escolha dos adjetivos é de finíssima seleção. Desse modo, o generoso Château-Margaux é comparado aos 516 alexandrinos do poema “A jovem Parca” [“La Jeune Parque”] de Valéry, composto em 1917 e traduzido por Augusto de Campos, enquanto o penetrante Côte-du-Rhône equivale à homenagem que Maurice Ravel fez à valsa vienense com a composição para orquestra La Valse. Mas nada tão brilhante, tão excepcional como o livro de poemas de Guillaume Apollinaire Álcoois [Alcools], equiparado a um vinho Cabernet. Apollinaire, morto em Paris quando a gripe espanhola devastou a cidade em 1918, reverenciou a embriaguez, as tabernas e os vinhos do Reno nos versos de Álcoois.

Ao se referir simplesmente ao mar copioso do poeta Saint-John Perse (1887-1975), Paulo Mendes Campos não se preocupou em informar que esse é tema principal de Amers, do poeta caribenho e traduzido no Brasil com o título Amers: marcas marinhas por Bruno Palma, para quem “este é um canto épico de louvor ao mar como modelo de grandeza de toda criação humana”. Um épico só pode estar no mesmo patamar de um vinho completo: buquê, delicadeza e elegância, como as artes da França.

O poema no Diário da Tarde, jornalzinho com 20 edições publicado pelo escritor. Acervo Paulo Mendes Campos/IMS.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.