O Brasil, como os Estados Unidos, também teve a sua Marcha para o Oeste. E, ainda que separadas por um longo período de tempo, ambas tiveram o mesmo propósito: colonizar um vasto território no interior do país, até então habitado por povos indígenas – no caso do Brasil, também por comunidades quilombolas, seringueiras e castanheiras, entre outras. Apesar de pouco se falar atualmente sobre o tema, ele foi vastamente documentado por fotógrafos e cinegrafistas, entre os quais Alice Brill, José Medeiros, Henri Ballot e Marcel Gautherot, que têm seus acervos sob a guarda do Instituto Moreira Salles e acompanharam várias das incursões promovidas pelo Estado. É este material que compõe o eixo temático da edição 2023 da Bolsa IMS de Pesquisa em Fotografia.
Com o tema "Em nome do vazio. Fotografia, conquista e colonização de Estado no âmbito da Marcha para o Oeste", a Bolsa IMS quer estimular pesquisadores a produzir estudos inéditos a partir do diálogo entre o material registrado por esses quatro fotógrafos e o processo de ocupação e transformação de territórios considerados pelo Estado como vazios e incivilizados. O processo de colonização da região central brasileira foi lançado pelo presidente Getúlio Vargas em 1938, e teve como órgão executor a Fundação Brasil Central (FBC). Responsável pelo Núcleo de Pesquisa em Fotografia do IMS, Ileana Pradilla explica por que há tantas imagens da empreitada (veja abaixo uma seleção delas):
"O governo de Getúlio Vargas foi um governo que trazia a imprensa muito próxima de suas atividades", diz ela. "Ele já começou com a ideia de ser midiático, com o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939. Antes disso, a Marcha para o Oeste já se configurava, desde seu lançamento, como uma empreitada midiática. Boa parte das ações da Fundação Brasil Central foram documentadas pelos jornais, e não só pela revista O Cruzeiro. A cada incursão eram convidados fotógrafos, repórteres e cinegrafistas, fora os profissionais pertencentes ao próprio quadro da Fundação, e na semana seguinte as pessoas das cidades viam nos cinejornais essas imagens do Brasil "selvagem", inexplorado, as ações eram vendidas desta forma".
Ballot e Medeiros eram fotógrafos da revista O Cruzeiro, a mais importante publicação ilustrada do período; Gautherot, como free-lance, também trabalhou para a revista. Já Alice Brill era uma jovem que se iniciava na profissão. Seu primeiro trabalho profissional foi acompanhar uma comissão de deputados que tinha um tom questionador em relação às atividades da FBC. Sua ideia era publicar as fotos na revista Life, mas isso não aconteceu. Apenas duas imagens foram publicadas anos depois, em 1951, na revista Habitat, editada por Lina Bo Bardi.
"A FBC foi um projeto megalomaníaco, com muitas práticas de corrupção, violência e apropriação de terras", comenta Ileana. "Alice Brill era uma garota, e foi a única que conseguiu produzir fotografias nas quais a presença de mulheres é significativa. Num tipo de empreitada colonizadora tão masculina, que privilegiava o registro das mulheres indígenas nuas e visivelmente constrangidas, Alice fotografou as mulheres participando na vida cotidiana dos locais visitados", observa a responsável pela Bolsa IMS.
Por isso, a Bolsa estimula a realização de projetos que tenham como propósito resgatar e valorizar pontos de vista e narrativas das e sobre as pessoas fotografadas, sejam elas pertencentes aos povos indígenas invadidos ou a outras populações que lá habitavam, ou que lá chegaram com a promessa de uma vida melhor, e que também sofreram as consequências do processo de ocupação pela FBC. E, ainda, o estudo das fotografias do ponto de vista da construção de gênero, buscando investigar o lugar que as mulheres ocuparam nessas construções visuais e quais as narrativas que lhes foram atribuídas.
Serão duas bolsas no valor de R$ 30 mil cada, destinadas a pessoas pesquisadoras nascidas ou residentes nas regiões afetadas pela Fundação Brasil Central, ou, ainda, que tenham como local de trabalho e pesquisa as regiões afetadas pela ação FBC: Mato Grosso, Tocantins, Goiás, sul do Pará, sul do Amazonas e Distrito Federal. Uma das bolsas será destinada a pessoa pesquisadora negra ou indígena.
"Seria ótimo estimular que pessoas descendentes desse processo de colonização possam reler esse processo de Estado com outro olhar", comenta Ileana. "Porque ele sempre foi contado do ponto de vista oficial, até recentemente com exaltação a este poder colonizador do Estado em regiões tidas como vazias em nome do desenvolvimento."