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Caderno de aluna: Ana Cristina Cesar

12 de abril de 2021

O nome Luiz sempre foi importante na vida de Ana Cristina Cesar. Professor, amigo ou namorado, ela teve um Luiz presente em várias etapas de sua vida de apenas 31 anos. O mais, vamos dizer, arrebatador talvez tenha sido Luiz Augusto Ramalho, o Meu LUIZ-mais-que-maiúsculo, paixão de adolescência que cruzou continentes – deixaram o Brasil para estudar na Europa – e terminou em “irmãos de alma e talvez de estética” – diria ele ao entregar ao IMS fotocópias da correspondência entre os dois.

 

Caderno intitulado "Proposta do Luiz", em que Ana Cristina anotava as aulas de Luiz Costa Lima, seu professor na PUC. Acervo Ana Cristina Cesar/ IMS

 

Hoje as cartas integram o arquivo da poeta, assim como um conjunto de cadernos, entre os quais o intitulado “Proposta do Luiz”. O nome desperta curiosidade sobretudo para quem sabe que, para ela, Luiz não era pessoa comum. O deste caderno é Luiz Costa Lima, crítico literário e seu professor na PUC em 1977, onde ela concluía o curso de extensão de teoria literária.

O caderno onde registrava anotações das aulas não é menos bem cuidado do que os que fazia na infância, com todo o capricho de aluna aplicada. Universitária e adulta – estava com 25 anos –, tampouco deixou o hábito de desenhar nas mesmas folhas em que fazia notas bem redigidas, coerentes, prova da capacidade de se entregar a devaneios e, ao mesmo tempo, reter o que absorvia nas aulas. Nesta, registra a proposta teórica do mestre.

“Resumir é já interpretar”, provavelmente palavras que ouviu do professor, mas que não deixam de dar a medida do conteúdo do caderno: guardava o que julgava mais relevante. Pelo coloquialismo da linguagem, percebe-se que ela transcrevia as palavras de Costa Lima: “As minhas dúvidas mostram que eu não vejo o ensino como reprodução do saber. Eu dou o meu próprio instrumental contra mim”. Ou: “Formule e desenvolva uma questão que lhe tenha interessado”.

No mesmo caderno da então estudante de literatura, aparece, entre as notas de aula, um toque de poeta: "nenhuma dúvida, tá tudo perfeito/ livre empresa, baby". Acervo Ana Cristina Cesar/ IMS

 

Ela desenha, questiona, faz lembretes os mais diversos, dentre os quais os de “trazer maçã para o Vítor” até comprar "O labirinto e a esfinge”, prefácio do livro de Costa Lima Teoria literária em suas fontes, de 1975. Mas a essência do caderno está nas interpretações do poema de Drummond "A máquina do mundo”. Ana Cristina estudou sistematicamente a análise que faz José Guilherme Merquior em Razão do poema e depois em Verso, universo em Drummond.

Depois de anotar a comparação que o também professor e crítico Silviano Santiago faz do mesmo poema, ressaltando as diferenças entre “A máquina do mundo”, de Drummond, e a “Visão da máquina do mundo”, de Camões, no canto X de Os Lusíadas, Ana Cristina, bem ao caráter indisciplinado do caderno, passar a escrever um texto de ficção:

"Estou me embebedando romanticamente entre os chafarizes; fomos saídos de uma boca me passam nos cabelos; passam homens delicados – ó os delicados! ó fome desta pele frágil e branca dos desfalecentes! Sou mulher grande, farta, poderosa, exclamo alto nas trevas românticas entre milhafres e podridões torcidas. Mas a água me turva nesta praça enquanto imploro aos frágeis que tomem a peito estas crianças que erguem pedras. E me encharco até molhar completamente as pernas."

Diferentemente de outros cadernos, como o Caderno de crítica, ou o Caderno de memorialista, que obedecem a uma organização programada, este é um caderno fragmentário por natureza, nem por isso menos revelador da personalidade de Ana Cristina Cesar.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.

Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.

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