Em outubro de 2020 o escritor paranaense Dalton Trevisan confiou ao IMS as cerca de 600 cartas de que se compõe sua correspondência com Otto Lara Resende. Já chamava atenção das arquivistas a soma de 336 cartas escritas pelo curitibano, e, como guardasse cópias, juntou-as às recebidas e as incluiu na doação, o que dobrou o volume de itens. É, de longe, o interlocutor mais copioso do acervo do Otto epistolar. Abaixo dele vêm Fernando Sabino e Carlos Castello Branco, que não chegaram a enviar duas centenas de cartas, cada um.
Nascido em Curitiba em 14 de junho de 1925, Dalton Trevisan formou-se em Direito pela Universidade Federal do Paraná, exerceu a advocacia durante alguns anos e iniciou a carreira de escritor com dois livros que renega textualmente: Sonata ao luar (1945) e Sete anos de pastor (1948). Sua estreia oficial é com Novelas nada exemplares (1959), coletânea de contos sobre a qual trocará ideias com Otto, como se verá adiante.
Os dois conheceram-se por volta de 1955, na casa de Fernando Sabino, no Rio, onde Dalton encontraria os “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, ocasião em que, estranhamente, lembra ele, Otto, grande contador de casos, foi o que menos falou.
Àquela altura, ambos tinham estreado, embora, como se afirmou aqui, Dalton renegasse a obra publicada até então. Tratava de escrever os contos das Novelas nada exemplares, e Otto, já autor dos contos de O lado humano (1952), preparava-se para lançar os de Boca do inferno (1957), livro em que a infância é retratada sem a habitual inocência e que lhe renderia críticas severas.
A conversa na casa de Sabino continuou por meio de uma correspondência que se estendeu de 1956 a 1992, ano da morte de Otto, e fundou uma relação de amizade alicerçada em confiança mútua. Confiança no que diz respeito, sobretudo, a opiniões quanto à produção literária de cada um. Referindo-se aos contos de Boca do inferno, Dalton comentara em carta de 14 de fevereiro de 1956: “Vejo nele apenas um conto fraco – ‘Dois Irmãos’. Os demais mantêm nível esplêndido, com o sol de ‘O segredo’ brilhando sobre todos eles. São contos perfeitos e acabados, como se diz em linguagem jurídica, e não trechos de romances”. É o que ficaria provado na edição preparada por Augusto Massi em 2014.
Era impossível que um deles pensasse em publicar um conto sem o submeter à leitura do outro, ainda que tivesse de ouvir opiniões duras que a diferença de estilo de ambos talvez justificasse: o econômico Dalton podia reclamar de excessos no do amigo: “A objeção que eu faria não é a primeira vez que lhe faço: às vezes v. explica demais, para meu gosto, é claro”, escrevia ele a respeito de “Filho de padre”, também de Boca do inferno, na mesma carta. Da parte de Otto, o que acontecia, de modo geral, era que, implacável consigo mesmo e com seus próprios textos, além de revisá-los e alterá-los obsessivamente, culpava-se pelo que julgava defeitos. Não costumava se perdoar; martirizava-se. E como admirasse a concisão do estilo que chamava “daltônico”, detinha-se nos elogios, embora alertasse o amigo para “o risco de acentuar certos temas e certos pormenores”
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Conseguiram usar de franqueza rara nos palpites literários, sempre com compreensão recíproca. Se havia alguma tensão, bastava um esclarecimento e o mal-entendido se dissipava, como aconteceu em 3 de abril de 1957, quando Otto ressalta o “enorme poder de criação e de sugestão, sem excessos, sem beletrismo” do amigo, que considera “um escritor de verdade, sem beletrismo”. Dois anos depois, Dalton deixa transparecer algum desagrado com a observação. A resposta é firme, em 23 de março de 1959:
Ora, dr. Dalton, só muito masoquismo poderia levar você a essa interpretação injusta contra você mesmo e que jamais passou pela minha caraminhola! Quando eu disse beletrista, quis exprimir por essa palavra tudo que acho abominável: o falso escritor, o perfunctório, o sujeito que escreve para brilhar sem ter nada para dizer, o que faz da literatura um jogo de brilhareco social ou de salão, o que nada tem para libertar, o que é oposto ao homem condenado, amaldiçoado, amarrado à literatura que se confunde com o próprio destino pessoal, o que escreve de fora de si e não o que escreve de dentro de si mesmo, o sangue-de-barata, que dá laços graciosos em frases vazias, etc. Se eu disse aquela frase em carta, faça-me o favor de ir reler o trecho (se você tem a carta) e me diga se a sua interpretação é logicamente cabível.
O destinatário não tarda a reconhecer a interpretação equivocada, e em 16 de abril escreve: “Fui rever a sua carta onde me diz que eu não era um beletrista, ainda bem. Você tem razão no sentido da frase, que era um elogio e, citando de memória, troquei as bolas”.
As idas de Dalton Trevisan ao Rio, geralmente para tratar de questões na editora José Olympio, eram esperadas com alegria. E não só por Otto, mas também por Rubem Braga, que sequestrava o visitante para a sua lendária cobertura do edifício Barão de Gravatá, onde cultivava árvores frutíferas, flores e amigos, que recebia sempre com bom uísque. Tardes inteiras, noitadas e muito bom papo.
Mas Dalton não largava mesmo era Otto, que, durante uma época, tinha seu escritório particular num apartamento de quarto e sala na rua Piratininga 30/202, que Geralda de Oliveira, cozinheira da família, chamava de “palacinho”. Ali os dois conversavam durante muitas e muitas horas seguidas. Na casa oficial de Otto, o visitante era recebido com os magníficos almoços ou jantares preparados por Geralda, reverenciada pelos convidados e amada pelos Lara Resende. A Gerinha, como a chamavam as filhas de Otto e Helena.
Contistas por excelência, cada um deles publicou apenas um romance: vinte e cinco anos e dezoito livros de contos depois de estrear com Novelas nada exemplares, Dalton lançaria o romance A Polaquinha, para o qual Otto, que preferia Novos amores como título, escreveu a orelha: “[...] Asceta impenitente, suas histórias se escrevem com palavras e silêncio”, observa ele nesse livro que mereceria edição especial da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, com ilustrações de Darel Valença Lins, em 2002. Quanto a Otto, deixou, na correspondência, com detalhes, o registro do penosíssimo trabalho de construção de O braço direito (1963), o romance que Antonio Candido, no texto que escreveu para a quarta capa, chamou de “poderoso e estranho”.
Ambos tentaram escrever para teatro, mas interromperam o projeto. Apesar do envolvimento de Dalton Trevisan com o movimento teatral curitibano, não chegou a escrever uma peça, enquanto Otto deixou, em seu arquivo no IMS, apenas o primeiro ato do que seria Um cadáver sob o divã.
Como um todo, a correspondência entre Dalton Trevisan e Otto Lara Resende revela os sonhos, as ambições e, sobretudo, as angústias de dois escritores que, certos de seu destino, são atormentados pela insegurança, pela insatisfação, pela busca da palavra exata, da expressão enxuta, da construção perfeita e da fidelidade a um estilo. “Você é um ruminante do estilo, mastiga dez vezes antes de engolir e assim mesmo engole para um primeiro estômago, depois tem outro estômago — trabalha a peça como quem lapida uma pedra bruta” escrevia Otto ao amigo em carta de 23 de março de 1959.
Quanta disponibilidade, quanta entrega e quanta grandeza nessa bela amizade de dois escritores.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
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