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Drummond, Evandro Teixeira e Ela

10 de abril de 2023
Carlos Drummond de Andrade em sua casa, Rio de Janeiro, RJ, 1986. Evandro Teixeira/Acervo IMS

As relações de Carlos Drummond de Andrade com a fotografia não se restringem aos versos ou às crônicas em que fez referências ao tema. Sensível a essa arte que definiu como codinome/ da mais aguda percepção, foi amigo de Sylvio da Cunha (1907-1996), poeta ignorado do grande público e fotógrafo estudioso da sombra, assim como de Alécio de Andrade, que homenageou não só em poesia – é famoso o poema “O que Alécio vê” – como em prosa.

Foi com a mais pura camaradagem e admiração que Drummond se relacionou com o autor das fotos hoje exibidas pelo IMS na mostra Evandro Teixeira. Chile 1973. Com esse fotógrafo baiano, nascido em Irajuba, em 25 de dezembro de 1935, Drummond conviveu largamente quando foi colaborador no Jornal do Brasil. O poeta-cronista estreou naquele periódico em 1969, aonde Evandro chegara seis anos antes para integrar uma equipe de bambas do fotojornalismo para lá ficar até 27 de agosto de 2010, pouco antes de o jornal fechar as portas definitivamente. Via o cronista entrar com seu guarda-chuva embaixo do braço, pegar o elevador e dirigir-se à sala para entregar as crônicas semanais.

Aconteceu de, com a mudança da sede do JB para a avenida Brasil 500, na década de 1970, o septuagenário colaborador se desanimar a atravessar meia cidade para chegar ao novo endereço do jornal. Evandro, então já consagrado artista, mas que não se importava com a glória, passou a desempenhar o simples papel de portador. Era ele o feliz go-between do poeta: saía de seu apartamento, na rua Júlio de Castilhos, e passava na Conselheiro Lafaiete 60, edifício de Drummond, pegava a crônica do amigo e a levava ao jornal. Ali recebia a pauta diária para fazer suas fotos, o que não significa dizer que a ela deixasse de acrescentar seu olhar da mais aguda percepção e fugir do roteiro previsto.

Numa dessas visitas, em 1982, quando organizava a edição de Evandro Teixeira. Fotojornalismo, deixou, com o poeta, cópia das fotos de que se comporia o álbum, e pediu ao amigo um texto, a título de apresentação. Otto Lara Resende e Antonio Callado escreveriam mais dois. Inicialmente, Drummond julgou-se incapaz de atender o convite. Relutou um pouco antes de aceitá-lo, já com alguma alegria. Sem esconder a tensão de escrever crônicas para data fixa, com ou sem inspiração, apenas pediu ao fotógrafo: “Não me apressa, tá?”.

Mas não demorou. Encantou-se a tal ponto com o material que, em vez de texto, escreveu o poema “Diante das fotos de Evandro Teixeira”, incluído em Amar se aprende amando e fartamente divulgado desde que, em 2019, o acervo do fotógrafo, composto de mais de 150 mil itens, chegou ao Instituto Moreira Salles, hoje guardião do tesouro.

A pessoa, o lugar, o objeto
estão expostos e escondidos
ao mesmo tempo sob a luz,
e dois olhos não são bastantes
para captar o que se oculta
no rápido florir de um gesto.

É preciso que a lente mágica
enriqueça a visão humana
e do real de cada coisa
um mais seco real extraia
para que penetremos fundo
no puro enigma das figuras.

Fotografia – é o codinome
da mais aguda percepção
que a nós mesmos nos vai mostrando
e da evanescência de tudo
edifica uma permanência, cristal do tempo no papel.

Das lutas de rua no Rio
em 68, que nos resta
mais positivo, mais queimante
do que as fotos acusadoras,
tão vivas hoje como então,
a lembrar como a exorcizar?

Marcas da enchente e do despejo,
o cadáver insepultável,
o colchão atirado ao vento,
a lodosa, podre favela,
o mendigo de Nova York
a moça em flor no Jóquei Clube,

Garrincha e Nureyev, dança
de dois destinos, mães-de-santo
na praia-templo de Ipanema,
a dama estranha de Ouro Preto,
a dor da América Latina,
mitos não são, pois que são fotos.

Fotografia: arma de amor,
de justiça e conhecimento,1
pelas sete partes do mundo
a viajar, a surpreender
a tormentosa vida do homem
e a esperança a brotar das cinzas.

“É uma arte, é um mundo”, contou-me Evandro há poucos dias, sobre a emoção que lhe causaram os versos. O poeta começa por reconhecer a limitação da visão: dois olhos não são bastantes/ para captar o que se oculta/ no rápido florir de um gesto. O olhar não retém e não fixa aquele segundo que marca movimentos fugacíssimos,  próprios do ato contínuo, quando o ser involuntariamente se desnuda diante da câmera. São movimentos do florir, que, no gesto humano, se desdobram em expressões apreensíveis apenas pela lente.  Mesmo que o olhar os fixasse nas retinas, seria necessário expressá-los com o recurso da memória e das palavras, ambas insuficientes – sabemos. O poeta então atribui à lente mágica a capacidade de absorver além do olhar, e, o que é mais importante: ao conferir à lente o poder de enriquecer a visão humana, determina que só ela, e não o olho, é capaz de extrair, do real, um mais seco real, ou seja, a essência absoluta, aquilo que lhe é intrínseco, revelador e inapreensível pelo olho. Dessa maneira, atribui à lente e, indiretamente, ao clique do fotógrafo, superioridade em relação ao olho humano.

Está claro que, ao escrever o poema, Drummond refletiu sobre a lente, mas somou a isso a habilidade do fotógrafo e amigo que lhe solicitava o artigo. Além de reconhecer as fotos acusadoras de efeito queimante feitas em 1968, no Rio de Janeiro, e a dor da América Latina, nos registros do golpe militar no Chile, conhecia a tese de Evandro, para quem humildade e sorte são os atributos que o fazem o profissional vencedor de dezenas dos prêmios mais prestigiosos do mundo. Mas é justamente a humildade que o impede de mencionar o talento de quem, com a câmera na mão, enxergou o que muitos de seus pares não enxergaram. Humildade, sorte e, acrescentemos nós, talento, sem esquecer a insubordinação indispensável a um profissional do fotojornalismo – e Evandro a tem de sobra.

Num dos pontos altos da entrevista que deu a Nani Rubin e que resultou no artigo “Uma crônica do Brasil moderno”, ele exemplifica momentos em que a sorte esteve do seu lado. Um deles foi quando chegou a Santiago, enviado pelo Jornal do Brasil, para cobrir o golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet, que depusera o então presidente Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, morto no mesmo dia. O país afundou em trevas, mas ainda não eram absolutas: no dia 23, morria Pablo Neruda, e Evandro conseguiu entrar no Hospital Santa Maria, onde o corpo do poeta jazia sobre uma maca, antes de ser transferido para a urna. O fotógrafo viu-se no lugar certo, na hora certa, e reconheceu a oportunidade de cravar sua marca no fotojornalismo internacional. Era o único a ter conseguido entrar no hospital. Fez o registro de todo o processo funerário, desde o momento íntimo e imediato após a morte, ao qual ele teve acesso com ajuda da sorte, sim, e de d. Matilde, a viúva do poeta, que lhe permitiu entrar. Da sorte e da audácia de quem se dedica ao fotojornalismo. Mas, diz o fotógrafo a Nani Rubin: “Não era o Evandro o importante. Era a câmera. Ela sabia o valor do registro, do testemunho, num momento como aquele”.

“Ela sabia”. Ao afirmar que a câmera sabia, ele a personifica, confere-lhe a capacidade de discernimento, de decisão: “Ela” não perderia a chance de mostrar o poeta prêmio Nobel de Literatura naquele momento derradeiro. Não se furtaria a documentar a voz que se calava logo depois de deposto o presidente social-democrata. Verdade que não se calaria totalmente, porque, ao seguir o cortejo, “Ela”, nas mãos de Evandro, extraiu o mais seco real nas lágrimas do povo, na perplexidade de seus olhares, no desalento e na dor que se juntaram em multidão no Cemitério Geral de Santiago, onde se ouvia o coro fúnebre a dizer os versos de “Alturas de Macchu Picchu”, do Canto general: Ésta fue la morada, éste es el sitio:/ aqui los anchos granos del maíz ascendieron/ y bajaron de nuevo como granizo rojo.

Foi “Ela” também que, leal ao fotógrafo, não o decepcionou por ocasião da visita da rainha Elizabeth II ao Brasil, em 1968. Evandro furou o cerco de proteção segundos depois de a monarca entrar no carro, enfiou a câmera pela janela e clicou (foto abaixo). Era o improviso dos improvisos, o momento em que, diz ele, “se deu, deu”. Mas “Ela sabia”, e fixou a nobre madam abaixando-se para se sentar, com os cuidados de qualquer plebeu, em posição, digamos, nada majestática.

Rainha Elizabeth II, Avenida Paulista, São Paulo, 1968 (Evandro Teixeira/Acervo IMS)

 

Houve muitos episódios dessa natureza na longa carreira de Evandro Teixeira, gostosamente contados por ele em entrevistas escritas ou gravadas, dentre as quais a que deu ao site Testemunha Ocular,. Ali se vê que ele não exibe nenhuma foto específica, muito menos um prêmio que tenha ganhado. O que ele ostenta é simplesmente a Leica original, que começou a usar em 1959, quando deixou o Diário da Noite e foi trabalhar no Jornal do Brasil. Carrega uma do mesmo tipo e marca no peito e a ela se refere como “a minha Laiquinha”, mostrando a vantagem de portar uma câmera pequena, sem chamar atenção de ninguém, durante o carnaval, por exemplo, na rua, quando pode fotografar à vontade.

É bom lembrar que a cumplicidade irrefreável entre o fotógrafo e “Ela” não tem mão única. Em 1967, Evandro foi incumbido de registrar, no Aterro do Flamengo, a exposição de armamento bélico que marcava o centenário da sangrenta batalha do Tuiuti, durante a Guerra do Paraguai. Postou-se diante de baionetas enfileiradas e de chefes militares de alta patente. Sabia exatamente, ou achava que sabia, o que fazer. “Ela” esteve firme, precisa, pronta para o magnífico imprevisto daquele dia: não esperava Evandro que duas libélulas distraídas pousassem nas extremidades dos canos de duas baionetas. Por que, naquele momento, não aterrissaram besouros robustos ou as mais coloridas borboletas? Por que justamente libélulas, esses insetos de abdome longilíneo e dois pares de asas extensas e translúcidas, que lhes conferem leveza e elegância? Porque, dizia o filólogo alemão Walter Friedrich Otto, “o acaso é a lógica de Deus”. E o acaso mostrou que a delicadeza da libélula se opõe à brutalidade das armas; mostrou que a força pode ser estranha e ridícula diante da sutileza que esvoaça.

Baionetas e libélulas, Rio de Janeiro, 1967. (Evandro Teixeira/ IMS)

 

Quando Alberto Dines escolheu a foto das baionetas e libélulas (acima) para ilustrar a primeira página do JB, e não a do general Costa e Silva, presente à solenidade, entendeu profundamente o olho do artista. E acertou. Quem não entendeu foi o general, que se enfureceu com a escolha. “Questão de edição”, justificou Evandro ao militar, então presidente do Brasil, ao ser chamado para explicar por que tinha preferido dois insetos a cinco estrelas. Pelo que foi considerado desrespeito a autoridade, recebeu o castigo de passar uma noite na prisão. Mas estava definitivamente abonado. Afinal, o poeta tinha  razão: Fotografia – é o codinome/ da mais aguda percepção.

Em 1982, o Brasil comemorou os 80 anos de Drummond. Dessa vez, foi Rogério Reis o enviado à casa do poeta para fazer o registro da data. Ao então jovem fotógrafo de 28 anos de idade o poeta declarou ter o hábito de se sentar no chão e ler. Foi o bastante. Ficaria famosa a série de Reis, inicialmente feita para o caderno especial de dez páginas com que o Jornal do Brasil homenageou o poeta em 26 de outubro de 1982. Dessa série, apenas uma foto do poeta sentado no chão seria publicada no caderno, mas outras, no mesmo local, seriam reproduzidas na fotobiografia Drummond Frente & Verso. Drummond aí aparece descontraído, meio maroto, exatamente onde,  quatro anos depois, em 1986, Evandro também o fotografaria. Curiosamente, o poeta posa com a mesma camisa ou outra igual à que usara nas fotos dos 80 anos: polo escura com friso branco na gola, calça também escura. A diferença está no par de sapatos, mais esportivos, nas meias e óculos mais claros do que os usados em 1982. E, principalmente, no estado de espírito: agora mais contido, como era comum ser registrado. Os dois fotógrafos, amigos que se amam e se admiram, nem mesmo conversariam sobre o fato de terem registrado o poeta no mesmo lugar e na mesma posição. O fato nunca mereceu a atenção deles – ambos me disseram.

1 Os grifos são da autora

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.