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Em memória de Emanoel Araujo

12 de setembro de 2022

Baiano de Santo Amaro da Purificação, terra farta em importantes nomes da cultura nacional, o escultor Emanoel Araujo circulou com desenvoltura como produtor de arte – seu trabalho foi exibido em cerca de 150 mostras, individuais e coletivas, no Brasil e no exterior – e como gestor cultural e curador. Foi diretor do Museu de Arte da Bahia e da Pinacoteca do Estado de São Paulo, além de idealizador, criador e diretor do Museu Afro Brasil, em São Paulo, cargo que ocupava ao morrer em 7 de setembro, aos 81 anos. Apresentamos aqui dois retratos de Emanoel realizados pelos fotógrafos Madalena Schwartz (1921-1993) e Walter Firmo, titulares do acervo do IMS. Jorge Schwartz, professor titular em Literatura Hispano-Americana da Universidade de São Paulo, e Walter Firmo escrevem sobre os vínculos afetivos que nortearam essas relações.

Emanoel Araujo, 1981. Foto de Madalena Schwartz/ Acervo IMS

 

Madalena e Emanoel, amizade da vida

por Jorge Schwartz

 

Foi uma enorme surpresa chegar ao Museu Afro-Brasileiro na manhã da quinta-feira 8 de setembro e ver logo na entrada do velório, a modo de convite para entrar, um dos vários retratos do Emanoel Araujo feitos pela Madalena Schwartz. Isso me despertou uma avalanche de lembranças de uma amizade da vida inteira, permeada por trabalhos e exposições.

Para ter uma medida deste vínculo amoroso, o Emanoel fez todas as montagens das exposições em São Paulo, duas delas no MASP. Quando o Emanoel assume a Pinacoteca em 1992, uma retrospectiva da Madalena foi a sua primeira exposição, com uma bela curadoria do Diógenes Moura. No velório relembramos que ele foi três vezes ao apartamento do Copan para fazer a seleção. A mostra foi uma espécie de despedida em grande estilo, uma vez que poucos meses depois a Madalena veio a falecer.

O lançamento de Personae, onde Emanoel é uma das personagens retratadas nessa espécie de mosaico de retratos, foi realizada no Museu Afro-Brasil, como “Tributo a Madalena”. Hoje há um painel a ela dedicado de fotos de retratos de afro-brasileiros. A quarta capa do livro é assinada por Emanoel, com palavras que se derramam entre o carinho, a admiração e a perda da querida amiga: “Um olhar cheio de paixão”. “Quem poderia esquecer a doçura de Madalena, sua pequenina estatura que guardava uma forte personalidade e uma enorme paixão pela vida?”, relembra Emanoel.

Folha de contato de uma sessão fotográfica com Emanoel Araujo. Fotos de Madalena Schwartz/ Acervo IMS

 

As sessões fotográficas com os seus inúmeros modelos eram realizadas a portas fechadas, em clima de total intimidade e em ambientes mínimos. Daí que quase não haja registros da Madalena fotografando. Depois, a alegria de selecionar dos contatos os melhores fotogramas da série que, em geral, e dependendo do entusiasmo, era um ou dois filmes de 35 mm., 36 fotos cada um, quase sempre preto & branco. Não duvido que esta seleção, no caso do Emanoel, tenha sido feita a quatro mãos.

Emanoel Araujo ou o “demônio da Luz”

por Walter Firmo

 

A sensação era que eu estava diante de algo tangível e onipotente. Que se equilibrava suavemente sobre as pernas, flutuando leve como uma pluma, sem perder a implacável dignidade que lhe afluía , dando-lhe envergadura soberana dentro de um impecável terno azul cobalto, atribuindo-lhe ainda foros principescos de uma identidade irremovível. Observando-o ainda à distância, percebia-se certa empáfia perfilada, colada àquele homem que mais parecia uma entidade, essência de algo nada qualquer. Parecia firmar-se sobre potentes alegorias, bem a seus pés, que impávidas e colossais, rebrilhavam em magnético esplendor, torneando e glorificando aquele indivíduo enlevado em totem.

Uma configuração a lembrar meu verdadeiro pai, vestido na dignidade, meu querido José Baptista da Silva, aquele que me deu de presente minha primeira máquina fotográfica, uma Rolleyflex, quando eu perfilava meus quinze anos de idade. E que o tinha perdido recentemente, na configuração física que se impõe junto à carne e osso, falecidos – ele e minha mãe – em 1998, sob a casinha que lhes fiz e que lhes dei de presente, construída na cidadezinha de Rio das Ostras, mais precisamente na praia de Costa Azul, ali ao lado.

Porém aquele outro homem, que agora formatava meus sonhos e fantasias, era nada mais nada menos que Emanoel Araujo, um ser de carne e osso, sempre de bem com o mundo, um fausto no bom viver, embebido na sedução da prosa e poesia, a andar como se estivesse bailando diante de tanta vida, longe totalmente daquele sisudo que ocasionalmente gostaria ou aparentaria ser.

Conheci este mago senhor ainda em 1998, durante uma visita que fiz convidado por ele, ainda nos tempos que dirigia a Pinacoteca, um centro cultural paulistano ao lado da estação da Luz, lugar inseguro até então, localizada sobre um jardim dominado por prostituição, jogatina, ébrios e desocupados, atraídos para aquela região pelo desamparo policial. A história que se sabe é que nosso herói botou todo mundo para correr transformando o recanto popular em aceitação pública, espaço de respeito sob as ordens agora do imperioso transformador, o “demônio da Luz”, que em tom de brincadeira ele mesmo se autorizava ser nos tempos infernais que ali presidiu, ao tomar posse naquela casa de arte e cultura, hoje excepcionalmente com vestes luxuosas, sem as rejeições da sociedade de uma Pauliceia nada desvairada de tempos pregressos.

Emanoel Araujo em foto de Walter Firmo feita recentemente com celular, em São Paulo.

 

Cheguei a chorar num desses encontros com Emanoel, chegando do Rio de Janeiro a Sampa, indo da rodoviária do Tietê de táxi direto ao seu gabinete, e lá estava o curador de arte como ofício, transformado em tio e irmão, tangidos num abraço que tanto precisava e quanto me fazia bem, naqueles tempos em que perdi meu pai e minha mãe. Havia nele em mim um imenso guarda-chuva que me protegia e nos fazia, a cada viagem, mais amigos ainda. Tanto que ao longo de vinte e poucos anos de amizade, forjamos um idealismo profissional arraigado, a ponto de viajarmos juntos ao Nordeste, juntamente com meu filho Duda Firmo, trabalhando em torno de um projeto fotográfico invulgar, registrando e traduzindo nossas tradições codificadas em templos paisagísticos no rudimentar de nossa gente, mais humilde, charmosa e imperiosa nas festividades pagãs ou ligadas à igreja. Uma verdadeira irmandade a traduzir nosso povo.

E assim nos tornamos irmãos coesos, respeitando-nos como se traduzem as irmandades, ele como sempre impávido e colossal, eu apenas humilde, transacionando o mulatinho de Irajá, o Waltinho do Paraíso, o Waltinho da Lili, o Sacy dos três olhos e outras adjetivações fraseadas no tempo oportuno de um testamento inconfessável.
Éramos artistas. Ele vivaz, eu delirante. Abrigou-me no seio de sua instituição, o Museu Afro Brasil, fundado por ele na gestão política de Marta Suplicy: três exposições individuais, uma coletiva e o lançamento do livro Walter Firmo. Brasil: imagens da terra e do povo, editado no governo de José Serra, sob a tutela direcional do bravo professor Hubert Alquerés, então diretor da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

Ele mesmo deu viva voz a quem eu poderia ser, aduzindo no texto do livro considerações como a que se segue: “Walter Firmo é um desses gênios da fotografia brasileira, seu olhar iluminado, magnético, tem a rapidez do repórter e o refinamento do artista. Por certo ele é apolíneo, mas é também ao mesmo tempo um fauno sedutor com tudo que vê e registra a sua volta, criando uma atmosfera de luzido esplendor. A cada fotografia que realiza, derrama seu generoso olhar sensual e eloquente”.

Explosivo e vulcânico, o meu amigo caminhou muitas vezes sobre um terreno pantanoso, ceifado pela inveja daqueles que cobiçavam sua maneira de ser, impetuoso, impiedoso e sempre resoluto nas porfias profissionais onde buscava a perfeição, senão um condicionamento produtivo na tangência do obstinado embate de ser um vencedor, fosse o que fosse, aonde e quando.

Certa vez me contou que em 1980, ainda na Bahia, convidado pelo então governador Antonio Carlos Magalhães a assumir a direção do Museu de Arte da Bahia, foi indagado quanto às ideias que tinha para exercer a função. Emanoel, então discorrendo sobre a pergunta, desenvolveu objetivamente uma de suas ideias, dizendo à queima roupa que pensava em transferir o museu do bairro de Nazaré para o Corredor da Vitória. O governador, encarando-o assustado, foi logo respondendo: “Você não serve, você não é humilde”. E a conversa encerrou-se. O negro do Recôncavo, cujas altivez e ousadia sempre caminharam junto a ele, respondeu-lhe incontinente com um pau de resposta: ”Quem tem de ser humilde é o governador, eu sou um artista”. Surpreso com a resposta, o “pai” do povo baiano o mirou firmemente, retrucando: “Então você serve, esta é a minha intuição, quero despachar contigo assim que for possível”.

Esse foi o meu irmão, confraria essa ordenada pelo santo padre guiado por Deus pai da natureza e artífice da vivência entre os homens. Somos de uma safra cujo objetivo é cultuar não o desalento, mas sim objetivar as coisas, levando a sério o fazer criativo e imortal em todos os sentidos, cultivando dessa maneira um respeito verdadeiro e  profundo sobre o por que e para que viemos aqui, estamos aqui.

Morreu praticamente dormindo, diante de um AVC, ainda vestindo a mesma roupa com que trabalhara na véspera, nas primeiras horas da madrugada do dia 7 de setembro. Impávido e colossal, entrou para a história de nossas artes pela porta da frente, não sem antes bradar “Independência e morte”!

Uma pena, uma grande pena o Emanoel partir. Junta-se agora às estrelas o seu canto solar.