Um dos maiores cronistas visuais do Rio de Janeiro no século XX, J.Carlos é lembrado pelos traços elegantes, limpos, que faziam saltar das páginas melindrosas encantadoras, caricaturas arrasadoras de políticos, letras e iluminuras de requintada carpintaria gráfica. Mestre em seu ofício, o chargista, caricaturista, ilustrador e humorista carioca José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950) teve também um lado menos celebrado, embora igualmente caprichado: o de autor para crianças. Essa é uma das facetas que serão evidenciadas na exposição que o Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro vai inaugurar em março de 2017, na primeira mostra sobre o artista desde que parte do seu acervo chegou ao IMS, no início de 2015. Entre outras obras, todas pertencentes à coleção de Eduardo Augusto de Brito e Cunha, um dos filhos de J. Carlos, estão quadrinhos e capas feitas para o semanário infantil O Tico-tico, no qual o desenhista colaborou durante vários anos, além das folhas de rosto e aberturas das 21 histórias do único livro para crianças que ele escreveu e também ilustrou, Minha babá, de 1933.
“Ele era sobretudo um jornalista, mas tinha essa parte lúdica, também pedagógica, dos desenhos infantis”, conta o desenhista Cássio Loredano, consultor de iconografia do IMS, autor de seis livros sobre J.Carlos e um dos curadores da exposição, ao lado de Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires. “Naquela época as pessoas tinham necessidade de educar, achavam que era necessário acostumar as crianças com símbolos, como a bandeira. Em um dos desenhos que vamos expor, muito provavelmente feito para a Tico-tico, ele faz uma aula de história do Brasil para crianças em apenas 12 quadros, desde o descobrimento até a República”.
Minha babá, sétimo título da série Bibliotheca Infantil d’O Tico-tico, segue a literatura de cunho pedagógico-edificante da época, em textos que destacam as virtudes que as crianças devem cultivar, como a honestidade, a bondade, a solidariedade, a obediência aos pais. Em “O pequeno do chale (xale, em reforma ortográfica posterior) grande” e “As moedas de ouro”, por exemplo, há a mesma espécie de teste de caráter enfrentado por crianças que acabam devolvendo, de maneira espontânea, algo precioso (um tesouro ou dinheiro) a seus verdadeiros donos. As 21 histórias (houve uma segunda edição, no final dos anos 40, reduzida a 14 contos, com o texto já revisado pela primeira reforma ortográfica brasileira) trazem também muitas vezes animais como protagonistas ou coadjuvantes, como nas clássicas fábulas, igualmente recheadas de lições de moral, de La Fontaine.
A leitura da obra mostra que o J. Carlos escritor fica aquém do ilustrador – mesmo distanciadas no tempo, respeitando o contexto da época, algumas histórias se ressentem de uma estrutura narrativa eficiente. Porém, o simples fato de ter investido na criação de um livro infantil, que traz seus belos desenhos e capitulares pensados para cada texto, já demonstra o apreço pela garotada. Loredano salienta que, nos desenhos para o Tico-tico – a exposição no IMS apresentará 36 das dezenas de histórias publicadas no almanaque –, o artista encarnava completamente o ponto de vista dos pequenos, com personagens que pareciam dar vazão à porção gaiata do próprio J. Carlos. “Nunca vi um cara com tanta alma de criança. Muito levado”.
Entre 1920 e 1923, J. Carlos assinava como Nicolao, na contracapa do Tico-tico, as aventuras de Carrapicho, seu filho Jujuba, o gorducho Goiabada e a menina Lamparina, sempre metida em apuros. Loredano observa que o marmanjo Carrapicho, como a corroborar a tese do alter-ego crianção de seu criador, tinha um comportamento muito mais infantil e estabanado que Jujuba.
Nas páginas da primeira e mais importante revista dedicada ao público infantojuvenil no país, que circulou entre 1905 e 1962 e alimentava o leitor com jogos, desenhos, informações sobre história, ciência e artes – além, claro, de muitas lições de boas maneiras e amor à pátria –, os quadrinhos tinham grande destaque. Por ali também passaram, além dos personagens de J. Carlos, os inesquecíveis Reco-Reco, Bolão e Azeitona, criados por outro craque dos traços, Luis Sá. A partir da década de 30 a revista começou a publicar histórias de tipos já populares nos Estados Unidos, como Popeye, o Gato Félix e Mickey Mouse – inicialmente chamado aqui, aliás, apenas de Ratinho Curioso.
A coleção abrigada no IMS, que reúne aproximadamente mil desenhos originais, além de exemplares de revistas nas quais ele publicou, como Careta, Para Todos, Fon-Fon, entre outras, é apenas uma pequena parte da produção de J.Carlos, que trabalhou intensamente nos seus quase 50 anos dedicados à arte. “Nássara, outro grande cartunista, me disse certa vez brincando que ninguém sabia como J.Carlos arranjava tempo para fazer filho, porque ele desenhava como um louco, o tempo todo”, conta Loredano, lembrando que o artista morreu “praticamente em cima da prancheta”. Em 30 de setembro de 1950 ele teve um derrame enquanto desenhava e, levado para o hospital, morreria pouco depois, em 2 de outubro, aos 66 anos.
Se não tivesse partido tão cedo, aliás, teria legado mais uma preciosidade para as crianças: seriam dele, segundo Loredano, as capas dos famosos disquinhos de histórias infantis musicadas por Braguinha, que viraram um clássico e divertiram muitas e muitas gerações.
Além das obras para crianças, a exposição terá outras três divisões: em “Pensamento gráfico” estará à mostra toda a genialidade não apenas do desenhista e caricaturista, como também do letrista e revolucionário diretor de arte de revistas; “Brasil” reunirá os registros da vida nas ruas, dos costumes, do carnaval, além de um pouco de política; e “Mundo” terá a intensa cobertura gráfica da Segunda Guerra feita pelo artista que sempre alertou, desde cedo, para os perigos do nazismo.
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