Idioma EN
Contraste

Por Dentro dos Acervos Veja Mais +

Mário de Andrade nos Arquivos IMS

21 de novembro de 2022
Mário de Andrade (sentado, no meio) numa "noite estranhíssima", segundo ele próprio, em Belo Horizonte, em 14 de setembro de 1944. Na foto estão também, em pé, a partir da esquerda: Alcir Costa, Roberto Frank, Oswaldo Antunes, Hélio Pellegrino, Alphonsus de Guimarães Filho, Otto Lara Resende, Alexandre Drummond e José Mendonça. E, sentados, Edgard da Mata Machado, Oscar Mendes, João Etienne Filho e Milton Amado. Acervo Otto Lara Resende/ IMS

 

É possível que não se tenha falado tanto em Mário de Andrade, ao mesmo tempo, como neste 2022. Agora, que o ano chega ao fim e os refletores se voltam para outros eventos que não as comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna, vale olhar para a presença do líder do movimento no acervo de Literatura do IMS.

O ponto de partida para a investigação não pode ser outro: os ecos da famosa visita que Mário fez a Belo Horizonte em setembro de 1944, ocasião em que encontrou os jovens integrantes do quarteto mineiro: Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino e Fernando Sabino, dos quais os dois primeiros têm seus arquivos sob a guarda do IMS.

Uma foto que registra o encontro, conservada por Otto em seu arquivo, mostra Hélio Pellegrino, o quarto, de pé, e Otto Lara Resende, o sexto, na mesma fila. Tirada no dia 14 de setembro, numa “noite estranhíssima”, dizia o próprio Mário, no Cassino da Pampulha, antecede, claro, a troca de cartas que teria sido intensa entre eles se Mário, àquela altura consagrado por seu “gigantismo epistolar” – a expressão é dele –, não tivesse morrido em 25 de fevereiro de 1945, apenas cinco meses depois da visita. Houve tempo, porém, de escrever uma carta de dez páginas a outro gigante da epistolografia: Otto Lara Resende, a quem o remetente faz um balanço da viagem e uma avaliação perspicaz do grupo. De Fernando Sabino, aliás, ele já fizera um conceito positivo três anos antes, quando recebera, e elogiara, o primeiro livro de contos do então jovem de 18 anos: Os grilos não cantam mais. A partir daí, começaram a se corresponder e Fernando se encarregaria de aproximá-lo dos outros.

                                                                                                                                     Clique na imagem para ampliá-la
Carta de Mário de Andrade a Otto Lara Resende, em que comenta o encontro com o grupo de amigos mineiros. 24/11/1944. Acervo Oto Lara Resende/ IMS

 

“Faz uma semana que cheguei d’aí”, escreve Mário a Otto em 24 de setembro, impressionado com o exercício da amizade e o espírito de grupo cultivado por aqueles rapazes de pouco mais de vinte anos e que por isso mesmo chamou de “os vintanistas”. “E como eu invejo vocês!”, exclamava o autor de Macunaíma. Mário vivia muito sozinho no lendário endereço da rua Lopes Chaves 546 e talvez, por isso mesmo, tenha sido tão tocado, no coração, por todos, especialmente pelo quarteto de amigos:

O Hélio me preocupa demais... O Paulo é o que mais me inquieta... Você nem me inquieta, nem me preocupa exatamente. A modos que você me "ocupa"; a sua presença é menos insistente mas é mais constante, me envolve com aquele silêncio quente das conivências. Nós já nos conhecemos desde o princípio do mundo.

Impressionava-o também a maturidade deles, de modo geral. Achava que a mocidade lhes tinha sido roubada pelo mundo, e Paulo Mendes Campos o preocupava especialmente: “É o mais envelhecido de vocês, o mais maltratado por si mesmo”, avaliava. Talvez pelo tipo de sensibilidade, pela delicadeza de espírito, Paulo sofria de angústias que nunca o abandonaram. Uma delas, o crepúsculo, esse fenômeno tão natural que lhe causava efeito devastador e sobre o qual muito escreveu.

“Você é a paz, e não a sua, eu sei, mas a minha melhor paz, a lembrança mais grata e mais profunda dentre os conhecimentos que fiz desta vez em Belo Horizonte. É a lembrança que menos me guerreia”, continuava na carta a Otto. De fato, não podia ser a paz do destinatário, que não a tinha. A dor da existência não poupava aqueles candidatos a escritores que sofreriam ainda, e muito, de outras dores, inclusive, e sempre, a da criação.

Otto não foi poeta, mas o impacto da figura de Mário naquela noite do Cassino o levou a escrever o poema “Aparição de Mário”. Do homenageado, Otto receberia o comentário: “Ah, Otto, praquê você foi perceber a minha tristeza lá dentro da minha... boa-educação!”

                                                                                                                                       Clique na imagem para ampliá-la
"Aparição de Mário de Andrade", poema de Otto Lara Resende. Acervo Otto Lara Resende/ IMS

 

Se Otto homenageou-o no calor da hora, Paulo Mendes Campos, em sua vasta produção de cronista, louvou o amigo e guardou, em seu arquivo, recortes de jornal ou revista como, por exemplo, o da bela crônica  “Mário de Andrade”, publicada em 1o de junho de 1947, portanto, dois anos depois da morte, na coluna “Semana Literária”  do Diário Carioca. Ao afirmar que não conseguia compreender Mário a um ponto que lhe satisfizesse, declara, com sua proverbial agudeza: “sua crítica literária foi profunda e leviana e desconfio que ele se comprazia em se mostrar inteligentíssimo ao mesmo tempo que irrefletido assim com um ar songa-monga de quem não entende nada da vida”. E conclui:

Mário romancista, Mário poeta, Mário crítico, Mário contista não chegam a superar, cada um isolado, uma personalidade mais forte do que os assuntos a que ele se entregava: Mário de Andrade escritor. O que importa de maneira excepcional nele é o homem de letras, o literato com a sua linguagem, com suas virtudes estilísticas, com seu mecanismo de pensar, com seus caprichos, com seus cacoetes.

Vinte e seis anos depois da morte dele, Paulo o relembraria vivamente em “Com Mário de Andrade”, crônica em que faz uma espécie de glossário de frases do amigo, como estas:

Calor tropical: o calor desmoraliza, desacredita o ser, lhe tira aquela integridade harmoniosa, sua moral sem sutileza, e suas forças brutamontes de criação. Que se tenha conseguido implantar, neste calor brasileiro, laivos bem visíveis de civilização europeia, me parece admirável de força e tenacidade. E talvez tolice enorme...

ou

Da ignorância fundamental: devo confessar preliminarmente que eu não sei o que é o Belo e nem sei o que é a Arte.

Houve ainda outras homenagens, como o poema “A Mário de Andrade”, incluído em O domingo azul do mar, de 1958, republicado em jornal, em 1990, e que começa assim:

“Não sei que mãos teceram teu silêncio.

Morto. Estás morto. Sonhas morto? Morto.”

[...]

Um outro mineiro que, pela devoção ao estudo, teria provavelmente se dado muito bem com Mário de Andrade foi o historiador Francisco Iglésias. A ele Mário escreveu a primeira carta daquele ano, segundo o próprio remetente, em 2 de fevereiro de 1945, ano em que pretendia “dar um bom espaço pras cartas”. Não podia imaginar que dali a alguns dias, em 25 de fevereiro, a “Indesejada das gentes” o levaria. Estava com apenas 52 anos e expusera boa parte de seu pensamento nas cartas, o que se justifica na confissão que faz a Iglésias:

Ah, se eu conseguisse escrever artigos com a facilidade e a isenção de espírito com que escrevo cartas. Muitas destas me saem artigos alentados no tamanho e escoam fáceis em pouco tempo. Mas é raro o artigo de quatro páginas datilografadas que não tome várias horas.

“Não sei, mas você tem jeito de ensaísta. A sua carta demonstra um pensamento nutrido, sensível à nuança das ideias, atento ao valor das palavras”, continuou Mário a escrever a Iglésias, que seguiria carreira acadêmica como professor de História Econômica Geral e do Brasil e História Social e Política do Brasil na UFMG, seria brilhante como historiador e deixaria livros importantes, entre os quais a coletânea História e ideologia, em 1971, em que reuniu seus melhores ensaios. Homem de vasta cultura, conjugou ciência, literatura e rigor metodológico nos textos ensaísticos, bem ao estilo que Mário de Andrade vislumbrou nele.

Muito distante dos mineiros, uma mocinha de dezoito anos, no interior do Ceará, dirigia-se aos “irmãos do Sul”, que não era outro senão o grupo paulista, liderado por Mário, nos manuscritos de um livro de versos intitulado Mandacaru. Era Rachel de Queiroz, da Fazenda do Junco, em 1928, dois anos antes de publicar o romance O Quinze. Os originais hoje integram seu arquivo, no IMS, que publicou o livro em 2010, ano do centenário de nascimento da escritora.

Rachel citaria versos do poema “O êxodo”, de Mandacaru, no prefácio que escreveu para O Quinze, e Mário, ao escrever a crítica do romance, que prontamente publicou em 14 de setembro de 1930, estranhou “a versalhada” e não mediu palavras:  “Prefácio e verso são literatice mas da gorda”, avaliou ele, que considerou o romance “obra-prima, tout court”.

Na década de 1930, premiada e festejada no Rio de Janeiro como a autora do flagelo de 1915, ela participaria das rodas na Taberna da Glória em torno de Mário de Andrade, durante os três anos em que ele morou na então capital do Brasil e certamente se divertiram com os versos citados no livro. É de Rachel um dos mais belos perfis do escritor paulista, publicado em O Jornal em 1o de março de 1970 sob o título “Lembrança e saudade de Mário”, quando se completaram 25 anos da morte dele. Termina com este extraordinário paralelo entre estes dois grandes:

Como nós, em bando compacto, o amávamos! Ele e Manuel Bandeira foram os dois grandes amores de nossa geração. Manuel, claro e mordente, limpo, terno sem derrames, preservando sempre em si um elemento inviolável, um núcleo inatingível; Mário o inumerável, o abraçável, o manifestador, o corrigedor, o inventor, o ruidoso, o cantador; Manuel o clássico. Mário o barroco. Manuel um cristal de carbono concentradíssimo, um diamante; Mário, o aluvião de ouro rolando pela barranca.

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.