Só duas coisas têm valor na vida: comida e bebida
Zé Celso e Zé Miguel Wisnik
A comida parece ser um dos grandes temas da humanidade, figurando como cena de caça em rochas e cavernas, até chegar às páginas literárias. A expressão “as madeleines de Proust”, por exemplo, quase se emancipou da origem para cair na boca do povo. No primeiro volume do clássico francês Em busca do tempo perdido (1913), o personagem dá uma mordida despretensiosa em um desses bolinhos durante um chá da tarde e o extraordinário acontece: era a invasão de “um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa”, que o arrastará direto para a infância.
A comensalidade foi um ritual social e histórico com o qual até Jesus se entusiasmou, e o tópico também está presente nos arquivos do Instituto Moreira Salles. Acredite: em meio a caixas de manuscritos, cartas e fotografias, constam algumas boas receitas. E é possível se gabar no próximo almoço fazendo o creme de milho de Clarice Lispector ou testando os biscoitos da mãe de Drummond, que acompanham muito bem a geleia de laranja com sotaque francês de Marc Ferrez.
Minas além do queijo e da cachaça
Comecemos pelo arquivo de Carlos Drummond de Andrade, mineiro de nascimento, onde está uma das melhores culinárias nacionais. No dossiê “Mamãe lembranças”, dedicado à mãe do poeta, Julieta Drummond, encontram-se 6 receitas escritas na frente e no verso, com letra caprichada, em uma folha já amarelada e com vincos nas bordas.
Ali estão variações do mesmo tema: biscoitos e bolo de queijo. Mesmo um século mais tarde, os ingredientes elencados por Julieta não são estranhos à nossa cozinha: à exceção da araruta, acham-se com facilidade polvilho, fubá mimoso, manteiga, ovos, queijo ralado e “açúcar quanto adoce”.








O que foge do trivial nesse par de páginas é a “geleia de mocotó”. Presente na infância da maior parte das crianças brasileiras, a matriarca dos Drummond deixa a receita para quem quiser substituir a famosa geleia de mocotó industrializada por uma caseira:
“Cozinha-se bem o mocotó (1 mocotó), depois ponha-se em uma vasilha até ficar morno. Tira-se toda a gordura. Antes de ir ao fogo, juntam-se 7 claras de ovos bem batidas, 1 xícara de caldo de limão, açúcar quanto adoce. Mexa-se continuamente. Estando no fogo, põe-se uma casca de limão e alguns pedaços de canela. Quando estiver em ponto de coar, põe-se 1 xícara de vinho branco. Para saber o ponto de coar, esfrega-se na mão: espumando, pode coar.”
Do lado do pai, Drummond herdou uma receita de vinho. Na Fazenda do Pontal, em Itabira do Mato Dentro, onde viveu sua família, Carlos de Paula Andrade ousou cultivar um vinhedo em sociedade com o francês Jean-Baptiste Casemiro Sipolis. Juntos, fabricavam vinho e aguardente. Descontado o bairrismo, a bebida produzida naquelas terras foi considerada de “excepcional qualidade, equiparável aos melhores [vinhos] recebidos da Europa”, segundo o jornal itabirano O tempo, em 1891.
No final do século XIX, fazendeiros mineiros se arriscavam em uma tentativa vitivinícola para diversificar a economia. Com a queda da exploração de minas de ouro e a tardia mudança política traziada pelo fim da escravidão, o foco econômico voltava-se para a lavoura e a pecuária. Ouro Preto organizou um concurso ao qual concorreram 10 viticultores do estado, entre os quais o sócio dos Drummond. Monsieur Casemiro Sipolis levaria para casa o prêmio de vinhedo mais extenso: eram quase 42.000 videiras distribuídas em 20 hectares – quase 18 campos de futebol.
Da profissão do pai, o poeta se distanciou completamente ao vir para a então capital federal, a cidade do Rio de Janeiro. Mas o aspecto rural manteve-se vivo em prosa e em poesia, com o livro O fazendeiro do ar (1954) e a crônica “Notas sobre a Fazenda do Pontal” (suplemento A Lavoura Literária,1981), na qual Drummond narrou a aventura paterna com o vinho.
É à memória dele - do pai - que o autor escreve “O vinho”, bonito poema publicado em Boitempo II: menino antigo (1973):
A garrafa espera o gesto,
o saca-rolha espera o gesto,
a família espera o gesto
que há de ser lento e ritual.Ergue-se o pai, grão-sacerdote,
prende a garrafa entre os joelhos,
gira regira a espira metálica
até o coração do gargalo. [...]Esse menino
não aprende nunca a beber vinho?
(Quero é aprender a abrir o vinho [...])
No poema, Drummond recompõe a cena litúrgica de testemunhar o pai abrindo uma garrafa de vinho sem deixar mácula roxa no branco da toalha de linho. O menino – o poeta – não quer beber, quer aprender a abrir, verbo presente em tantos outros textos. Mas já não há vinho para abrir, nem porta, nem fazenda. Minas já não há mais.
Da albumina à geleia de laranja
No arquivo de Marc Ferrez encontram-se mais que negativos de vidros com retratos e paisagens que registram um jovem Brasil independente. Estão também cadernos que o fotógrafo levou consigo vida afora, entre os quais este com endereços, datas de aniversários e inventário de suas peças. As notas foram feitas entre 1915 e 1922, quando, depois da morte de sua esposa Marie Lefebvre, Ferrez decidiu passar um tempo na Europa.
Perdidas entre orientações para autocromos e uma relação dos lugares que havia fotografado estão duas receitas: geleia de laranja (Recette de confiture d’oranges) e compota de melão (Compote de melon).

Em outro caderno desse mesmo período, “Anotações França”, Ferrez escreve na mesma página receitas de clovisses (amêijoas em Portugal, vôngoles na Itália), de brioche de batata e de um produto para limpar prata – sem distinção alguma.
Se o fotógrafo soube combinar com maestria produtos químicos complexos, como ácido sulfúrico, soda cáustica e bicarbonato, talvez a cozinha não seja assim tão distante do laboratório de fotografia. A afinidade do chef Ferrez com combinações e proporções garantirá elogios às receitas culinárias, mais seguras que as que costumava usar para fixar e revelar imagens.
Geleia de laranja
9 laranjas de casca fina e 2 limões
- Cortar 6 laranjas em fatias finas com casca, retirando as sementes.
- Retirar a casca das 3 outras e cortar a polpa bem fininha.
- Acrescentar o suco dos 2 limões.
- Deixar de molho em 2 litros de água durante 24 horas, depois ferver até reduzir pela metade, até mais ou menos 1 litro e ¼.
- Acrescentar 2 quilos de açúcar e deixar reduzir meia hora.
Rende 4 potes de geleia.
Compota de melão
Assim que terminar de comer o melão, corte a casca para que sobre apenas o verde e um pouco do melão. Corte em pedaços e cozinhe-os em um pouco de água. Depois de cozido, dispense essa água, acrescente um pouco de açúcar e 4 ou 5 minutos no fogo – é excelente
Clovisses/Amêijoas
Para clovisses ou conchas (tipos de moluscos) – Iavar 3 ou 4 vezes. Depois coloque em uma panela sem nada ou com buquê de ervas sobre – elas liberam água e se abrem. Mexer de vez em quando.
Brioche de batata
Esmagar bem — colocar as batatas em uma forma com uma gema de ovo e levar ao forno.
Clarice Lispector: quase o crème de la crème
No topo de um dos manuscritos de Um sopro de vida está uma receita de creme de milho verde. No entanto, como quem separa a cabeça do corpo, a receita está rasgada justamente no título: falta o corpo do creme.






Em meio a aproximadamente 350 fólios de tamanhos diversos, com trechos de romance, documentos pessoais e uma caligrafia desafiadora, fui em busca do restante da receita, tentando fazer coincidir as folhas de mesma largura com a do fragmento inicial, tão diminuto. Eureca: achei uma das páginas que quase completará o creme.
Alegria de pesquisadora dura pouco – ou pelo menos até encontrar a próxima lacuna. Falta o finalzinho da receita, que fica como uma tarefa para a imaginação: cada um finaliza como gosta e, enquanto isso, a gente testemunha, no verso da página incompleta do creme, a aparição de uma das últimas personagens de Lispector, Angela Pralini: “Eu me curei da morte. Nunca mais morri”.
Creme de milho verde
Refogar uma latinha de milho verde com uma colher de sopa de manteiga e a cebola ralada. Deixar de lado. Colocar numa panela 2 colheres de sopa de manteiga. Quando derretida, acrescentar 4 colheres de sopa de trigo. Juntar depois uma xícara de chá de caldo de carne e duas xícaras de chá…
Memória afetiva, comida afetiva
Embora o trabalho no acervo seja focado em processos de preservação e catalogação de objetos e documentos, gosto de manter como lembrete diário que, mais do que materialidade, tempo e titulares, o arquivo lida com pessoas que tinham uma música, uma cor e, neste caso, uma comida preferida.
O arquivo se despe de certa assepsia para se juntar às panelas da cozinha, onde está o valor da vida.
Elizama Almeida trabalha na área de Literatura do Instituto Moreira Salles, é doutoranda na Universidade de Coimbra e faz parte do grupo Lacuna no arquivo.