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Cadernos de escritor: Rachel de Queiroz

03 de abril de 2018

Os mais de cem cadernos de escritores diversos, no acervo de Literatura do IMS, mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram de laboratório de criação literária a autores como Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Ana Cristina Cesar, entre outros. A série Cadernos de escritor revela as naturezas diversas de alguns desses documentos, cuja singularidade depende da natureza de cada autor.

Antes de O Quinze

“Eu não sou uma romancista nata. Os meus romances é que foram maneiras de eu exercitar meu ofício, o jornalismo” – disse Rachel de Queiroz, em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira.

Foi percebendo a vocação da filha – só na “Última Página” da revista O Cruzeiro Rachel ficaria por trinta anos seguidos – que a mãe, Clotilde de Queiroz, tratou de guardar os primeiros artigos que a menina de 16 anos escreveu, inicialmente  para o jornal O Ceará, ainda sob o pseudônimo de Rita de Queluz, e depois para O Povo, ambos de Fortaleza.

Na primeira página do álbum pode-se ler a carta que a mocinha, filha do advogado e fazendeiro do Quixadá, no Ceará, escreveu à rainha dos estudantes daquele ano de 1927. Postada da Estação do Junco, perto das terras onde Rachel construiria a casa da lendária fazenda Não me Deixes, o documento, que O Ceará publicaria no mês seguinte sob o título “Uma interessante carta recebida pela Rainha dos Estudantes”, mostra a irreverência e graça da remetente. Sem furtar-se a ridicularizar a pompa do título, julgando-o anacrônico, escreve Rachel de Queiroz:

Eu, que na minha ingenuidade de tabaroa, só compreendia rei à antiga, de carruagem, manto e coroa de ouro, não posso conceber essa rainha "made às pressas", que anda comigo no bonde, não conduz pajens nem batedores, que não usa coroa nem manto e que, como nós, pobres mortais, paga modestamente o seu tostão.// É por isso que avento a ideia de lhe mudarem o título, e, em vez de ser chamada "Sua Majestade, Susana, Rainha dos Estudantes Cearenses", proclamem-na como "Chefe do Soviet Estudantal do Ceará".// Veja que título pomposo. E não lhe acarretaria o absurdo e anacrônico Majestade; bastar-lhe-ia, quando muito o “Excelência’ ou o mais simpático e democrata “cidadã-chefe”.

Não sem surpresa, certamente, a carta irônica e malcriada renderia convite para que a remetente passasse a ser colaboradora do jornal. Muitas vezes mencionada em perfis biográficos da romancista ou cronologia de sua vida e obra, essa carta não esteve tão acessível quanto agora, disponível na base de dados de literatura do IMS.

Tratada por cronista a partir de setembro de 1927, a cronista alternava a assinatura: Rita de Queluz, Rachel, ou Rachel de Queiroz. Acontecia ainda de escrever seu nome verdadeiro com o pseudônimo entre parênteses. De uma maneira ou de outra, publicou ali, além de crônica, vários poemas, entre os quais “Rosas de Santa Luzia”, que Manuel Bandeira incluiria a partir da segunda edição de sua Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos.

Toda a trajetória de Rachel de Queiroz no gênero crônica já se delineia nos primeiros artigos publicados na imprensa. Não só do ponto de vista estilístico como da temática. Mostra este álbum, que também pode ser pesquisado no arquivo de Rachel de Queiroz, sob a guarda do IMS, que a sua prosa forte e enxuta era característica desde os primeiros textos. E que a preocupação social lhe era cara já em 1928, quando, na revista A Jandaia, se insurge contra o fato de as mulheres não terem direito ao voto, regulamentado apenas em 1934.

Por essa época, ela escrevia os versos de Mandacaru, que se manteriam inéditos até seu centenário de nascimento, em 2010, quando o IMS os publicou. Aí fermentava a temática de O Quinze, lançado em 1930, quando a mocinha de vinte anos incompletos deixou o Brasil perplexo com o romance que se tornaria um clássico da literatura brasileira.

Rachel de Queiroz coroada Rainha dos Estudantes, Fortaleza, 26 de julho de 1930. Fotógrafo não identificado. Acervo Rachel de Queiroz/ IMS

Sabe-se lá por que motivo, depois de ter ironizado a nobreza da Rainha dos Estudantes de 1927, Rachel de Queiroz, eleita para o mesmo posto em 1930, aceita  manto, cetro e coroa, mas prova que o reinado não lhe tira do prumo: abandona a festa de coroação, em 26 de julho de 1930, e corre para cumprir seu dever de jornalista. É que naquele dia fora assassinado João Pessoa, governador de Pernambuco, e ela precisava preparar a matéria do dia seguinte.

  • Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do IMS.