A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Sérgio Rodrigues criou “Tirolesa” inspirado numa foto de José Medeiros, tirada no Jockey Club do Rio de Janeiro por volta de 1950.
Batata. Estola de raposa, cabelo da mesma cor, se bem que com o chapelão era difícil ter certeza. Mas o que eu estou dizendo: ruiva sim, barbaridade, imagina. Imaginou, pilantra, que eu sei? Eu também: fogo da cabeça aos pés, vermelha em cima e embaixo. Aquela pele suave de leitinho de cabra com duas gotas de groselha, veludo, sardas boiando na superfície, e essas eu nem precisava imaginar porque pulavam do decote feito pulgas amestradas. Chegou toda assim meio quase arfante de salto tique-taque e narizinho franzido, vinha abrindo caminho na multidão, uma bomba atômica.
O senhor se incomodaria de tomar conta da minha estola um minutito, dois no máximo? Preciso ir. Ir? Ir ali. O senhor está no céu, senhorita, mas claro que posso. Obrigada, muito gentil, mas é senhora. Ah, senhora? Me perdoe, é que tão jovem… Senhora Mata. Viúva.
E foi saindo, deixou a estola pendurada na grade, raposinha aos cuidados do raposão. Aí eu te pergunto, pilantra: precisava ela dizer aquilo? Viúva? Batata, batolina: estava pedindo. Implorando. Praticamente uivava, e de repente naquela tribuna cheia de chapéus e beldades eu não via mais ninguém, nem o prado eu via, a Gávea estava deserta e eu só tinha olhos para a senhora Mata que se afastava tribuna acima para retocar o rouge no toalete ou outra coisa mais doida de imaginar.
Imaginou? Agora imagina também que nem os cavalos eu via mais, e olha que eu tinha apostado alto em Nimrod, quase metade do salário. Mas naquele momento eu nem lembrava que tinha um binóculo pendurado no pescoço e sendo assim não registrei que Nimrod deslizava na grama altivo como um cisne, um pouco afastado do grupo com Salamalec e Carrasco, Araújo deitado para a frente sussurrando jeitoso no ouvido dele. Quase na hora da largada e eu só pensava na égua puro-sangue que a essa altura tinha sumido no mundaréu de gente e deixado de lembrança um montinho de pelos afogueados, cenoura na frente do burro, barbaridade. Eu defenderia aquela estola com a minha vida.
De repente me veio à cabeça o velho ditado, azar no jogo, sorte no amor, e tive certeza que Nimrod ia perder, mas não liguei. Demorei um pouco a entender o que dizia a velha de verruga no queixo. Estava muito exaltada, trazia com ela dois seguranças do Jockey, minha estola, minha estola, e eu agarrei a pele de raposa e disse alto lá, minha senhora, este bichinho aqui tem dono. Foi só eu dizer isso para os dois armários me levantarem um metro do chão pelos cotovelos, um escândalo. Pois é: passei aquela noite na delegacia. A senhora Mata, ou que nome tivesse a ruivinha, ninguém nunca mais viu.
O delegado de plantão era um boa-praça que parecia o irmão mais velho do Oscarito e acabou acreditando em mim. Conheço essas amigas do alheio, ele disse, pode saber que ficou de longe observando o senhor, se ninguém viesse reclamar a mercadoria ela voltava toda catita, quá-quá-quá. Como o delegado não ligava para turfe, só quando pisei na rua na manhã seguinte e cheguei no jornaleiro eu soube que Tirolesa, a alazã argentina treinada pelo Juan Zúniga, tinha humilhado Nimrod por vários corpos. A primeira fêmea da história a vencer o Grande Prêmio Brasil. Foi aí que eu entendi, pilantra, só não me peça para explicar: alguma coisa muito profunda está mudando para sempre neste mundo velho.
Sérgio Rodrigues é escritor e jornalista. Mineiro radicado no Rio, é autor de nove livros, entre eles o almanaque Viva a língua brasileira!, a coletânea Cartas brasileiras (org.) e o romance O drible, vencedor do prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos) e lançado em sete países. É colunista da Folha de S.Paulo e roteirista do programa Conversa com Bial.