Idioma EN
Contraste

Armando Freitas Filho (1940-2024)

26 de setembro DE 2024 | Nani Rubin
Armando Freitas Filho. Foto de Cristina Barros Barreto

 

Em fevereiro de 2020, às vésperas de completar 80 anos, Armando Freitas Filho proferiu numa conversa gravada em vídeo uma de suas máximas de hipocondríaco convicto: "O corpo é um traidor, trai você de maneira mórbida". Um dos maiores poetas brasileiros revelados na segunda metade do século XX, Armando acaba de ser traído pelo corpo que o sustentou por bem vividos 84 anos, completados em 18 de fevereiro. O autor morreu neste 26 de setembro, mas deixa um legado inestimável, em forma da mais fina poesia.

A conversa citada acima foi conduzida por Alfredo Ribeiro e Laura Liuzzi, e pode ser vista no post Viva Armando!. Ela teve como objetivo celebrar a data redonda do poeta, mas também a então recente chegada de seus arquivos pessoais ao acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles, onde documentos, manuscritos e outras peças serão em breve catalogados e disponibilizados para pesquisa.

Armando nasceu em 18 de fevereiro de 1940 e publicou 19 livros ao longo de quase seis décadas, entre eles À mão livre, 3x4 (vencedor do prêmio Jabuti), Raro mar, Rol (vencedor dos prêmios Rio de Literatura e APCA) e a coletânea Máquina de escrever — poesia reunida e revista (1963–2003), em que comemora 40 anos de carreira.  Seu último trabalho, Só prosa, foi lançado em outubro de 2022, e, como o título revela, reúne textos num formato inédito para o autor, nos quais celebra a força da memória. Antes dele, publicou em novembro de 2020 Arremate, obra em que trabalha temas como a a passagem do tempo e a finitude. Como nos versos a seguir, retirados de Viagem e testamento:

“Estou de saída.
Está na hora.
Amanhã é feriado
ou ferido?
Estou entre o abraço
e o adeus sem aceno”

Seu primeiro livro, Palavra, foi lançado em 1963, aos 22 anos. Era um caminho natural para o jovem que começou a escrever poemas ainda adolescente, aos 15. Ele acabara de ser apresentado à obra de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, num disco presenteado pelo pai em que os poetas recitavam seus versos, respectivamente, no lado A e no lado B. Com João Cabral de Mello Neto e Ferreira Gullar, eles comporiam seu quarteto inspirador da poesia brasileira. Mas quem mais o impressionou foi mesmo Drummond. Armando dizia ter obsessão pelo mineiro de Itabira, com quem chegou a conviver e de quem se tornaria amigo.

O acervo de Armando no IMS é formado por dezenas de recortes de material publicado na imprensa sobre ele e seus livros, provas de capas, prefácios e orelhas de livros escritos por José Guilherme Merquior, José Miguel Wisnik e Silviano Santiago, entre outros, além de fotografias. Entre as preciosidades, um livro inédito, Coração de verão ou oitent’anos, que seria feito em parceria com o artista visual e amigo Roberto Magalhães. Há também um vasto material sobre Ana Cristina Cesar, além de cerca de 900 cartas com muitos interlocutores, entre eles Heloisa Buarque de Hollanda, Antonio Candido, Mario Chamie, Cassiano Ricardo, Rubens Gerchman (autor das capas de Palavra e Dual), Antonio Houaiss e o professor e crítico austríaco Friedrich Frosch, tradutor de livros seus.

São ainda muitas as cartas trocadas com Carlos Drummond de Andrade. Também há um poema datilografado, que Armando escreveu em 1977 ao autor de "No meio do caminho", e nunca enviado. Ele descobriria os versos 40 anos depois, no processo de organização de seus escritos em vias de serem doados ao IMS. A história por trás do poema, e o motivo provável de ter permanecido inédito em algum nicho do escritório da casa da Urca, no Rio de Janeiro, onde morou por décadas com a mulher Cristina e o filho Carlos (ele tem ainda a filha Maria Fabriani, que mora na Suécia) foi contada a Manya Millen no texto 40 anos depois.

                                                                                                                            Clique na imagem para ampliá-la
Poema que Armando Freitas Filho escreveu, e nunca enviou, para o amigo Drummond. Acervo IMS

 

Como Drummond, que foi servidor público, chefe de gabinete de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Saúde e mais tarde diretor do Arquivo do Iphan,  Armando trabalhou em diversos órgãos do governo, sempre ligados à cultura. Foi pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal de Cultura, assessor do Instituto Nacional do Livro no Rio de Janeiro, pesquisador da Fundação Biblioteca Nacional e assessor no gabinete da presidência da Funarte.

Também era guardião da obra de uma das poetas mais cultuadas da geração imediatamente posterior à sua: Ana Cristina Cesar (1952-1983), que o indicou aos pais como destinatário final de seus escritos, caso lhe acontecesse algo. Com a morte prematura da poeta, esse material ficou sob a guarda do amigo, e hoje está no acervo do Instituto Moreira Salles. Dele fazem parte as cartas trocadas entre os dois, hábito cultivado ainda que morassem ambos na mesma cidade. Numa delas, de 1982, que o leitor pode ler na íntegra aqui, ela dizia sentir medo: "o de que qualquer Lacan te roube de mim… ou te roube um verbo… ou te cure a gagueira encantadora… pronto, confessei."

A gagueira citada por Ana C. o acompanhou a vida inteira e era uma marca indelével e vistosa do poeta. "Creio que minha poesia tem algo da minha gagueira, com muitas vírgulas. Adoro repetir-me para ver se acrescento algo desviante daquele assunto já estabelecido e pensado", disse ele certa vez em e-mail enviado ao poeta e compositor Thiago E 1.

No livro 3x4, há inclusive um poema que trata dessa condição:

A muleta do gago
é outra voz, uma gag
um ventríloquo ferido
pelo garfo da gafe
um tapa de luva de pelica
no lugar outrora ocupado
por um rosto
ou a sensação, a fantasia
de que são incompletos
o jogo e a palavra golf

Armando nos deixa depois de muito celebrado em vida. É admirado por uma geração de jovens poetas, ganhou vários prêmios, teve sua trajetória registrada por Walter Carvalho no documentário Manter a linha da cordilheira sem o desmaio da planície (2016). Em agosto de 2012, a serrote, revista de ensaios do IMS, celebrou seus dez anos de vida publicando uma breve antologia da letra D (de dez) no Alfabeto serrote. Convidado a participar, Armando Freitas Filho escreveu sobre a dor. O texto do poeta pode ser lido a partir da página 35, na revista reproduzida abaixo. Nele, diz:

"Sei que me despeço antes do desfecho, antes que a dor ou o dia desfira.
A noite afinal dispara. Vou no vácuo, no intervalo harmônico entre dor e nada, acuado em corpo único, vivendo do próprio fígado"


1. Armando citou trecho da carta enviada a Tiago E ao responder uma pergunta na revista Cult, edição digital de 21 de julho de 2020. A revista convidou leitores e admiradores do poeta para formularem perguntas a Armando por ocasião de seus 80 anos.


Leia mais

Viva Armando! | Por Dentro dos Acervos

Armando 80 | Evento

Preciso ou não arrumar minha mesa? | Por Dentro dos Acervos

40 anos depois | Por Dentro dos Acervos

Meu caro poeta | Correio IMS

Tomo tudo na veia | Correio IMS

Sobre Ana Cristina Cesar | IMS no YouTube

Leituras do Acervo | #IIMSdeCasa