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A cara do país nos estúdios de fotografia

30 de julho de 2021
A jornalista Claudia Camillo aponta para uma foto sua, criança, na exposição Retratos de Limercy Forlin. Reprodução do Instagram

 

No finzinho de maio, a jornalista Claudia Camillo compartilhou através de um post no Instagram a alegria ao identificar uma foto sua ainda criança na exposição Retratos de Limercy Forlin. Não só ela está lá. Seus pais e sua irmã também. E é provável que alguma antiga professora, o médico da família e o balconista da farmácia da esquina de sua casa em Poços de Caldas estejam retratados numa das 7.500 fotografias reunidas na mostra, em cartaz até 6 de março no IMS Poços. Um número impressionante, mas que corresponde a apenas 1,5% do universo de aproximadamente 400 mil negativos arquivados no estúdio de Limercy Forlin (1921-1986).

Forlin faz parte de um grupo seleto de fotógrafos de estúdio, integrado por grandes nomes como Chichico Alkmim (1886-1978) e Augusto Weiss (?-1950), que têm seu acervo sob a guarda do IMS. Fotografaram sua aldeia – Forlin, a Poços de Caldas da segunda metade do século XX; Chichico, a Diamantina da primeira metade do mesmo século; e o austríaco Weiss, a Curitiba dos imigrantes a partir de 1890, quando chegou ao Brasil – e, ao fazer isso, criaram um retrato da sua época, uma fatia do tempo que comove quem vê as imagens. 

No caso da mostra de Limercy Forlin, a repercussão entusiasmada entre os moradores de Poços de Caldas provocou a sua prorrogação e inspirou a área de educação do IMS. A partir de 31/7, haverá uma ação no espaço expositivo com a seguinte indagação: quem você encontrou na exposição? A ideia é identificar os presentes nos retratos através dos visitantes da exposição, e ao mesmo tempo propor uma interação: as pessoas deixarão informações e relatos que serão transformados em ativações no Instagram @IMSPocos

"Não deixa de ser uma exposição nostálgica", diz o curador Teodoro Dias. "Várias pessoas saíram chorando de lá, porque veem a mãe, o pai, gente querida que já se foi, essa carga de emoção que vem com a imagem." Morador da cidade, o próprio Teodoro, ao trabalhar na seleção de imagens, encontrou um envelope com quatro fotografias suas, duas delas ainda criança e adolescente. 

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"Limercy não era o único fotógrafo de estúdio de Poços, mas certamente era o mais importante", diz Teodoro. E com um diferencial que hoje permite a realização de uma mostra como essa: ao fazer os registros solicitados pelo cliente, principalmente para documentos, ele não descartava os negativos; guardava-os cuidadosamente, organizados pela data de nascimento. Isso fez com que seu estúdio, criado em 1945 e tocado pela mulher e pela filha depois de sua morte, em 1986, funcionasse como uma espécie de banco de memória visual da cidade até 2016, quando a família desativou o negócio, oferecendo o acervo ao IMS – o conjunto está desde então sob a guarda do instituto. 

Teodoro Dias destaca algo que chama muito a atenção do visitante neste tipo de fotografia: o modo como reflete costumes. "As pessoas têm falado muito, observado detalhes de moda, o tipo de corte de cabelo. Uma coisa que você vê em grande parte das fotografias, principalmente nas mulheres, que iam mais arrumadinhas tirar fotografia, é que uns 80% dos vestidos, da roupa, era feita em casa. Você vê claramente que era roupa de costureira; hoje ninguém mais tem isso", observa.

O apuro com as vestimentas, mas de modo bem mais elaborado, é algo que também salta aos olhos nas fotos de Chichico Alkmim, cujo acervo está no IMS desde 2015 em forma de comodato. Para o curador Eucanaã Ferraz, que se debruçou sobre os cerca de 5,5 mil negativos para organizar a exposição Chichico Alkmim, fotógrafo, a sua obra encanta de imediato pela beleza. Eucanaã não desconhece que todo mundo costuma se arrumar para ser retratado, principalmente quando se trata de imagens posadas. "Mas o fato de ser comum não faz com que deixe de ser algo  extraordinário", diz ele. "Primeiro que você vê ali uma coisa muito linda que é a cultura da vestimenta, do mundo das costureiras e dos alfaiates, que se formou até os anos 60, quando começou a ser substituída pela massificação da roupa pronta, industrializada", diz ele.

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Eucanaã comenta que Chichico nunca se destacou por ser um fotógrafo inovador. "É exatamente o contrário, ele foi um seguidor da tradição, mesmo quando a tradição já não existia mais – mesmo tecnicamente. Ele acompanhava toda a modernização da fotografia, comprava os manuais, mas se ateve à tradição. Dos quase seis mil negativos seus no IMS, pouco mais de uma centena são negativos flexíveis.  Ele seguiu com negativos de vidro a vida inteira, usando a máquina de fole, com iluminação natural".  

O que torna então suas fotos tão especiais, que faziam com que até os responsáveis pela limpeza do IMS disputassem para voltar às salas da mostra? "Primeiro, o lugar onde ele está, que é um lugar especial, a cidade onde mais se extraiu diamante no mundo num certo período", diz ele. "E, somado a isso, o fato de ser um fotógrafo com uma sensibilidade fora do comum. As pessoas estão lá inteiramente vivas, com suas histórias, com seu corpo, suas memórias. Como se estivesse fotografando a pessoa naquela hora, e aquela hora é tudo o que ela é, o grupo a que ela pertence, o lugar de onde veio, e projetivamente, é tudo aquilo a que essas pessoas vieram a se transformar, que é no Brasil de depois e de hoje".

O retrato de uma época – e de uma fatia específica da população, os imigrantes italianos, poloneses e ucranianos convidados a colonizar o Sul do Brasil em fins do século XIX e início do XX – é o que torna tão atraentes as fotografias de estúdio de Augusto Weiss, ele mesmo imigrante, mas da Áustria, que instalou no centro de uma ainda bucólica Curitiba o seu estúdio Foto Progresso. Seu acervo foi adquirido pelo IMS em 2017, e ainda não está disponível para consulta.

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O coordenador de Fotografia do instituto, Sergio Burgi, destaca a potência do conjunto:

"São imagens de um período em que a fotografia não circula. São alguns poucos fotógrafos que vão fazer a documentação de algum evento, as pessoas ainda vão ao estúdio. E se nota nas fotos do Weiss uma certa dureza cultural, na forma como esses imigrantes se preparam para essas fotografias em família", comenta Burgi.

A fotografia como memória pessoal era feita exclusivamente em estúdios fotográficos. E, nesse ponto, vale destacar o trabalho do malinês Seydou Keïta (veja foto abaixo), que produziu  numerosos retratos em estúdio dos habitantes de seu país  entre 1948 e 1962, trabalho exibido na exposição Seydou Keïta nos IMS Rio e Paulista. Mas os três profissionais atuantes no Brasil citados aqui documentaram também cenas externas. Weiss fotografou casamentos, festas, o trabalho nos campos. Chichico também registrou casamentos, festas populares e religiosas, cenas de rua. E Limercy tampouco fugiu aos casamentos, fotografando ainda operários em uma fábrica de cabos de eletricidade, além de atender gratuitamente a pedidos de entidades filantrópicas. 

Foto de Seydou Keïta feita em seu estúdio em Bamako entre 1948 e 1963, e que integrou a exposição do fotógrafo do Mali realizada no IMS. Contemporary African Collection (CAAC). The Pigozzi Collection

 

Com o tempo, ressalta Burgi, a questão do retrato muda. "Porque a fotografia amadora vai levando o retrato para o âmbito familiar, você mesmo produz os seus retratos. É outro universo de imagens que agora vai acontecendo", observa. "Não é mais aquela ida ao estúdio para  produzir um registro que de outra forma não existiria. Se você não ia ao estúdio você não tinha uma pequena coleção de retratos de familiares. Com a fotografia amadora você resolve isso. Então esses estúdios vão se adequando a demandas sociais novas." 

A verdade é que mesmo fotos de documentos, como as produzidas por Limercy com alta qualidade (ele usava os mesmos negativos em 6x6 utilizados por Marcel Gautherot e Pierre Verger, preocupava-se com a luz correta, retocava os negativos) hoje são feitas domesticamente, ou em pequenos bureaus de informática, e muitas vezes nem chegam a ser impressas. As fotografias realizadas nos estúdios por nossos antepassados, e tão bem representadas pelos acervos sob a guarda do IMS, persistem em encantar como "a presença do invisível", como diz Eucanaã Ferraz. O invisível é o tempo.

 

Nani Rubin é jornalista e integra a Coordenadoria de Internet do IMS