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As duas faces de um restaurador

12 de setembro de 2018

A Sessão Mutual Films é um evento bimestral com o propósito de criar diálogos entre as várias faces do meio cinematográfico, trazendo para o público, sempre que possível, filmes, restaurações e eventos inéditos em sessões duplas. O trabalho do restaurador Ross Lipman é o tema da edição de setembro de 2018. Ele foi, durante muitos anos, o principal restaurador do UCLA Film & Television Archive em Los Angeles, onde trabalhou em importantes obras do cinema independente norte-americano de ficção e de documentário. De 19 a 22 de setembro, serão apresentados nos cinemas do IMS Rio e Paulista os filmes Os tempos de Harvey Milk e A conexão, além da performance O livro do paraíso não tem autor, seguida de conversa com Lipman.

Thom Andersen, Kenneth Anger, Charles Burnett, Bruce Conner, John Cassavetes, Julie Dash, Barbara Loden, John Sayles e Orson Welles são alguns dos artistas cujos filmes passaram pelas mãos de Ross Lipman, um dos mais importantes restauradores norte-americanos da atualidade. Nascido em Chicago, em 1963, Lipman começou como cineasta independente e experimental antes de mergulhar no ramo da restauração. Quando entrou para o Acervo de Cinema e Televisão da Universidade da Califórnia, Los Angeles, em 1999, sua carreira no cinema completava dez anos. Na época, as restaurações do acervo concentravam-se em filmes narrativos hollywoodianos. O foco foi alterado durante os 16 anos em que Lipman trabalhou na instituição, aumentando a presença do cinema independente e experimental nos projetos.

A perspectiva de Lipman sobre restauração, descrita em diversos artigos e entrevistas, trata a prática tanto sob seus aspectos artísticos quanto técnicos. Sendo um filme um compêndio de ideias (de roteiro, de direção, de trilha sonora), materiais (a câmera, o gravador, a película, o vídeo) e situações diversas (condições de pré-produção, produção, pós-produção e distribuição), o restaurador precisa levar em consideração cada um desses aspectos para que o resultado seja o mais próximo possível da obra idealizada pelo artista. Ainda assim, Lipman defende que toda restauração é uma nova versão da obra original, já que mudanças tecnológicas e a perda de informação com o decorrer do tempo impossibilitam a criação de um gêmeo idêntico.

Com isso, ele desenvolveu o conceito de “zona cinza”, ou seja, “um território desconhecido em que o preservacionista precisa tomar decisões, quando não existem guias definitivos deixados pelos cineastas. As escolhas feitas podem optar entre seguir ou não fielmente o espírito da obra, determinando dessa forma a experiência vivida pelo espectador ao assistir ao filme.” (“The Gray Zone: A Restorationist’s Travel Guide”, em inglês). Lipman afirma que, para conseguir uma reprodução fiel, um restaurador deve operar em um modo artesanal, usando uma visão subjetiva e, assim, alcançar um meio termo entre a arte e a ciência.

Na segunda edição do evento bimestral Sessão Mutual Films, Lipman virá a São Paulo e ao Rio de Janeiro para apresentar projeções em DCP de dois filmes que ele restaurou em película e supervisionou a remasterização digital durante os anos em que trabalhou na UCLA – A conexão, de Shirley Clarke, de 1961 (restaurado em 2004), e Os tempos de Harvey Milk, de Rob Epstein, de 1984 (restaurado em 1999). Ele também realizará, no contexto de seu trabalho artístico, uma performance de live cinema chamada O livro do paraíso não tem autor, de 2010.

Cena de A conexão (1961), de Shirley Clarke. A partir da esquerda: Jim Anderson (como Sam), William Redfield (como Jim Dunn) e Garry Goodrow (como Ernie)

 

A conexão é o primeiro longa-metragem de Shirley Clarke, uma artista multifacetada que estudou dança moderna e migrou para o cinema ao investigar formas de registrar cinematicamente a dança. Com o mesmo espírito performático de seus primeiros filmes, A conexão – baseado na peça homônima de 1959 de Jack Gelber, encenada originalmente pelo grupo teatral Living Theater – explora ironicamente a ideia de cinema direto, ao retratar um jovem cineasta e seu cinegrafista, investidos em documentar um grupo de artistas e músicos de jazz viciados em heroína, em uma quitinete nova-iorquina.

A coreografia frenética e rodopiante da câmera 35 mm reproduz tanto o ritmo agitado dos viciados, que esperam ansiosamente a chegada do traficante (“a conexão”), quanto a instabilidade da dupla que os documenta, levando o espectador a examinar sua própria relação com as situações representadas na tela. A limpeza cristalina realizada por Lipman na restauração, após uma longa busca pelo negativo original, enfatiza a meticulosa visão de Clarke sobre a performance e o registro. A restauração de A conexão e dos outros filmes de Clarke ajudaram a colocar a cineasta em seu devido lugar de prestígio como pioneira do cinema híbrido.

Antes de sua restauração, Os tempos de Harvey Milk já era uma obra renomada, vencedora do Oscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem de 1985. O retrato extensivamente pesquisado de Harvey Milk, primeiro político abertamente gay eleito no estado da Califórnia – finalizado seis anos após seu assassinato, em 1978 – foi composto por uma série de entrevistas realizadas por Epstein em 16 mm e diversos materiais de arquivo em vídeo. Antes do trabalho de Lipman, o filme, dirigido por um pioneiro no registro cinematográfico do protagonismo gay nos Estados Unidos, existia apenas em cópias 16 mm. O restaurador considerou apropriado ampliar a obra para 35 mm, justificando a transferência ao dizer que Harvey Milk é “história escrita em uma grande tela”.

Cena Os tempos de Harvey Milk, de Rob Epstein, de 1984 (restaurado em 1999)

 

Diferentemente de A conexão (cuja diretora havia falecido em 1997), Epstein estava vivo e teve grande participação nas decisões tomadas por Lipman durante a restauração do filme. Entre essas decisões, novas transferências dos materiais em vídeo foram realizadas devido à insatisfação do diretor com as transferências que existiam. A nova versão, com cores menos saturadas, foi usada apenas em algumas cenas, para não descaracterizar o aspecto típico da época. A trilha sonora foi modificada do original em mono – pois 16 mm é um formato que possibilita apenas um canal de som – para o idealizado em estéreo. Dez anos após a conclusão da restauração, as cores do filme foram ainda mais refinadas com novas ferramentas digitais para a criação da versão digital de alta resolução. A restauração de Os tempos de Harvey Milk caracterizou-se por mudanças significativas do material original, e, tanto pela perspectiva do restaurador como do cineasta, foram mudanças para melhor.

Da mesma maneira que o conhecimento adquirido por Lipman na realização de seus próprios filmes influenciaram seu trabalho técnico de restauração, as intensas pesquisas que passou a fazer sobre os filmes que restaurou influenciaram sua obra artística subsequente. Seu fascínio inicial pela degradação da matéria, manifesto sob um viés estrutural e concreto em seus filmes experimentais, tomou um rumo distinto, voltando-se para extensivas pesquisas históricas e ontológicas sobre o significado do registro visual. O resultado culminou em suas performances de live cinema, nas quais Lipman lê ao vivo o roteiro de sua pesquisa enquanto projeta imagens de arquivo.

As performances de Lipman são a síntese de seu trabalho como artista e restaurador, pois expõem tanto as intensas pesquisas que realiza no processo de restauração de filmes quanto suas próprias indagações morais e estéticas sobre o material pesquisado. Na performance O livro do paraíso não tem autor, ele explora o material de arquivo audiovisual sobre a tribo filipina Tasaday, que viveu em total isolamento por milhares de anos até ser descoberta em 1971, durante o governo de Ferdinand Marcos. Lipman cria uma narrativa filosófica que investiga o impacto do contato dos Tasaday com a civilização moderna, e como sua história é criada e recriada ao ser explorada intensamente pela mídia global da época.

As pesquisas que Lipman exerce durante o processo de restauração trazem novas abordagens e recontextualizações de filmes, aproximando o grande público da história do cinema e do campo da restauração. O mesmo ocorre com sua obra performática, que busca incessantemente uma nova visão do passado. A apresentação de suas duas faces em diálogo expõe um campo de ação emergente que não só resgata obras deterioradas fisicamente pelo tempo, mas também, muitas vezes, reforça o valor da memória, tanto individual quanto coletiva.

  • Aaron Cutler e Mariana Shellard são curadores da Sessão Mutual Films