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História em lugares improváveis

06 de novembro de 2018

Especialmente neste mês de novembro, a Sessão Cinética apresentará dois filmes: depois de passar pelo IMS Paulista, o longa de 1975 As aventuras amorosas de um padeiro, de Waldyr Onofre, será exibido no IMS Rio no dia 29/11 em conjunto com o documentário Histórias que o nosso cinema (não) contava, de Fernanda Pessoa, que traça um panorama dos anos 1970 no Brasil com imagens e sons de “pornochanchadas”, o gênero mais popular no período e do qual o filme de Waldyr faz parte. Após a sessão dupla haverá o tradicional debate com os críticos da revista Cinética e a diretora.

 

Em agosto encontramos Fernanda Pessoa no Rio de Janeiro, por ocasião do lançamento do seu filme Histórias que nosso cinema (não) contava, um filme de montagem que se utiliza somente de filmes classificados como pornochanchada, realizados na década de 1970 no Brasil. Publicamos aqui a primeira parte dessa conversa, mantendo o tom informal, que também caracteriza os filmes, abordando tanto a produção realizada pela diretora quanto essa importante porção do cinema brasileiro, ainda tão negligenciada em seus valores culturais e artísticos.

 

Juliano Gomes: Por que mostrar essas imagens hoje?

Fernanda Pessoa: Me interessei muito por essas imagens a partir do E agora josé? A tortura do sexo (Ody Fraga, 1979). Trabalhava na filmoteca da Faap com o Máximo Barros, catalogando fotografias do cinema brasileiro, com o acervo do Máximo. O E agora José? tive que assistir para catalogar. Não tinha a menor ideia dessa produção, não sabia quem era Jean Garret ou David Cardoso ou Ody Fraga.

 

Andrea Ormond: Você tem quantos anos?

FP: Eu nasci em 1986. E, na faculdade de cinema, lembro que vimos Como é boa nossa empregada (Ismar Porto, Victor de Melo, 1973), mas numa perspectiva mais de reiterar “como é ruim nosso cinema” do que de perceber ali algo além. Era só pra assistir, dar risada, achar péssimo e acabou. Quando vi E agora, José?, eu não sabia o que pensar, aquela reencenação do Vladimir Herzog morto, a tortura altamente erotizada… Não sabia que aquilo existia. Fiquei com ele na cabeça por muito tempo. Depois, fui fazer mestrado e uma aula sobre reutilização de imagem no cinema experimental. Nessa aula, vi uma frase num filme: “Mesmo nos lugares mais improváveis, é possível achar traços da história recente”. Aí caiu a ficha: vou voltar a esses filmes com olhar histórico, procurando qualquer coisa que eles possam me ensinar sobre o período da ditadura, sobre esse período que não vivi. O que já me interessava muito: a contradição entre um gênero erótico e subversivo durante uma ditadura, um regime de ultradireita moralista.

 

AO: Então você então já chegou nesses filmes a partir da ponto de vista deles serem um contraposição política…

FP: Realmente, não cheguei achando que eles eram produto direto da ditadura.

 

AO: Em geral, quando as pessoas gostam da pornochanchada é mais pelo aspecto erótico, pela comédia… Mas então quero entender o seu ponto de partida. Você chegou nesses filmes buscando entender o Brasil?

FP: Então, Andrea, tem uma coisa no seu texto que pra mim é a sacada genial, porque eu não era uma fã típica da pronochanchada. Na verdade, a primeira vez que te contatei estava próxima da perspectiva do José Carlos Avellar sobre esses filmes. Escrevi um primeiro projeto superpreconceituoso e superinocente e mandei pra você. E aí você disse que discordava muito do Avellar e me deu indicações ali que me ajudaram muito a ter um olhar mais justo. Porque eu parto então do outro lado. Revendo esses filmes, consegui chegar nesse meio-termo. Não sou uma fã. Gosto muito dos filmes, mas não sou uma fã que vai pegar esses filmes e reassistir a todos por puro prazer.

AO: Sim. É que tenho uma memória afetiva desses filmes…

FP: Não tenho nenhuma memória afetiva deles, não assisti quando passava na TV Bandeirantes, eu era muito nova. Esse distanciamento é essencial pro filme. É uma tentativa de ter um olhar que mostra as coisas ruins e também coisas muito interessante que não estávamos olhando. Começo a vê-los por causa de um trabalho e decido revê-los pra ver o que eles podem me contar sobre o Brasil. Levantei uma lista de uns 300 filmes, procurando por títulos “suspeitos” e diretores. Consegui assistir a uns 150.

 

Cena de Histórias que nosso cinema (não) contava

 

 

JG: Qual era o corte desse agrupamento?

FP: Filmes que poderiam ser pornochanchadas. Filmes que poderiam se enquadrar em um certo conjunto de características gerais. Fui tendo que definir no meio do caminho. Tive que fazer também meus parâmetros para o que eu ia chamar de pornochanchada. Até me questionei se usaria o termo, ou se usaria “erótico-popular”. Mas decidi usar o termo justamente por ser do senso comum. Usando “erótico-popular” não vou conseguir conversar com o público. Pornochanchada é muito mais apelativo. Decidi então usar a própria lógica do cinema que eu abordava. Há muito títulos “enganosos” nesses filmes. De certa forma, fiz um pouco isso, porque não é exatamente “A” história da pornochanchada o que o filme é. Daí foi isso, defini que não ia trabalhar com Carlos Reichenbach, Walter Hugo Khouri, que foram reconhecidos como grandes diretores depois, decidi não trabalhar também adaptações de Nelson Rodrigues nem de grandes cânones da literatura brasileira. Fui achando documentos que foram me mostrando. De Noite em chamas (Jean Garrett, 1978), tinha uma crítica que falava ser um “pornô social”. Nos embalos de Ipanema (Antonio Calmon, 1978) é um dos filmes que classificavam como pornochanchada. Fui fazendo meu recorte também por aí, por relatos de diretores, pela imprensa, ou mesmo pela recepção atual.

 

AO: Após esse longo processo de convivência com essa produção você se considera transformada de alguma maneira?

FP: Sim, de várias formas. Numa primeira visão, por exemplo, aquele machismo todo nos filmes me era muito violento. Depois, comecei a entender e a olhar como se formava essa representação simbólica. Por que esses filmes têm tantas vezes o corpo da mulher ligado ao milagre econômico, por exemplo? Fui deixando de me sentir mal e violentada e fui passando a tentar entender como isso se formava. Transforma o meu feminismo também, num certo sentido. Comecei muito preconceituosa. E descobri que, mesmo nos filmes ruins, tem coisas boas. Nem tudo é só bom ou só ruim.

 

AO: Por exemplo, As aventuras amorosas de um padeiro (Waldir Onofre, 1976), por exemplo, toca no tema do aborto, que hoje é ultraurgente, e quem foi fazer isso foi um cara, Waldir Onofre, pelo qual ninguém dava nada, um outsider, e fez de uma maneira bastante complexa.

FP: Sim. Não dá pra enquadrar ele em nada., por isso ele fica meio perdido aí na história. Não está dentro de nenhum movimento.. O filme dele, um diretor negro, para a militância negra não é assim tão falado, porque é uma comédia, tem várias questões ambíguas. Então ele fica nesse limbo na história do cinema brasileiro. Aí decidi trazer ele pra mim, para tentar encaixá-lo em alguma história. O caso do Waldir é um pouco diferente dos demais filmes que uso no Histórias. Além de ser o único filme dirigido por ele, foi produzido pelo Nelson Pereira dos Santos, que é um nome que poderia ser mais ligado ao cinema novo do que à chamada “pornochanchada”. O Waldir começou como ator nos filmes do Nelson e não fazia parte da “turma” que produzia “pornochanchadas” na época. Eu vejo que claramente o Waldir usa uma tática interessante de usar os “clichês” da “pornochanchada” (entre eles: título chamativo que na realidade não tem a ver com a história do filme, uso de um ator típico da pornochanchada, como o Paulo César Peréio, e cenas de erotismo e nudez da protagonista Maria do Rosário) para na realidade fazer uma comédia popular de costumes com um alto teor de crítica social. Acredito que essa tática, que deve ter funcionado para chamar o público na época, tenha sido uma das razões para o estigma do Aventuras e a falta de reconhecimento do filme a longo prazo. O Waldir tinha um projeto para um próximo filme, chamado A noite do alô, uma espécie de fantasia carnavalesca sobre a construção do racismo no Brasil, que nunca se concretizou. O Aventuras tem elementos típicos da comédia popular, e acho que é um dos grandes exemplares de filmes desse tipo no país: o uso dos ditos populares na boca do patrão de Mário, a figura do bêbado de boteco, do corno, as cenas de manifestações e arte de rua, as referências ao candomblé, o fato do próprio Waldir dublar cerca de 17 personagens do filme etc. Um dos trechos que mais chama atenção no Histórias é a cena em que as mulheres cobiçam os pedreiros de uma obra, uma inversão do que estamos acostumados em termos de gênero. Parece uma cena absurda e difícil de se ver no cinema hoje.

 

JG: No Histórias, questões de gênero e, em especial, de raça são trazidas em boa parte pelo filme do Onofre, marcadamente por alguns personagens. Você poderia comentar em especial como o Aventuras traz isso às telas, de que maneira ele trabalha esses temas e suas contradições?

FP: A personagem feminina é a grande protagonista do filme, e eu sempre digo: as “aventuras amorosas” não são do padeiro, e sim da Rita! Ela questiona o papel passivo da mulher no casamento, claramente sofre influências da revolução sexual que chegou ao mundo e se interessa por sexo, quer fazer um aborto e não é julgada moralmente pelo filme por isso. Acho um filme excepcional para se pensar o lugar da mulher na sociedade brasileira dos anos 1970.

No primeiro delírio da Rita, vemos que ela usa uma espécie de guia, e ouvimos tambores de berimbau. Parece que isso já é um prelúdio do seu encontro com Saul, artista negro que será seu amante. Acho que o filme teoriza que a mulher e o negro ocupam lugares parecidos na sociedade brasileira, e por isso se entendem e se relacionam de outra forma. É importante notar que há uma complexidade nos personagens masculinos negros, mas Rita é uma mulher branca, e a questão da mulher negra não é tratada no filme. É inclusive através da relação interracial dos dois que o Waldir vai explicitar muito do racismo naquele momento, então entendo que há uma “função” em Rita ser uma mulher branca. Se, em 1975, o Aventuras amorosas de um padeiro foi um dos primeiros filmes de longa-metragem a ser dirigido por um homem negro no Brasil, é importante lembrar que, nesse ano, nenhuma mulher negra havia dirigido um longa no país: o primeiro filme dirigido por uma diretora negra só vai aparecer quase 10 anos depois, em 1984 (Amor maldito, da Adélia Sampaio). É curioso inclusive notar como a própria Adélia também vai usar algumas táticas parecidas com a do Waldir, de usar clichês da “pornochanchada” para fazer um filme feminista sobre lesbianismo. O filme deixa muito claro o racismo que o personagem de Saul sofre, seja pela violência física (nas perseguições por ele ser amante de uma mulher branca), seja pela falta de representatividade de negros (no ótimo diálogo em que ele conta para Rita que quer ser ator, mas jamais deixariam ele ser Hamlet). Também acho interessante notar que, antes de Saul entrar em cena, parece que há uma certa objetificação do homem negro, na figura do pedreiro com quem Rita tem sonhos eróticos. Esse personagem é interpretado pelo próprio Waldir, ele mesmo filho de um pedreiro, o que faz com que interpretações simplistas caiam por terra.

 

JG: Como foi sua experiência com a memória física do cinema brasileiro na produção do seu filme? Que imagem e experiência você teve em relação à preservação dos filmes? Comente também se é possível o acesso a esses filmes hoje.

FP: Encontrá-los foi uma das etapas mais difíceis do Histórias – e ainda mais encontrá-los em boas condições. Procurei os filmes em todos os lugares possíveis: colecionadores privados, cinematecas do Rio e de São Paulo etc. Alguns produtores não sabem onde estão as cópias originais, então aceitavam ceder os direitos para o filme, mas nós tínhamos que encontrar uma cópia em boa qualidade. Alguns filmes foram perdidos para sempre e viraram lenda entre os aficionados. Outros só achamos cópias boas em 35 mm, sem uso há muito tempo, como o próprio Aventuras amorosas de um padeiro, que só achamos em boa qualidade na Cinemateca do Rio. Um dos meus interesses agora é telecinar essa cópia em 35 mm, para que o filme siga existindo em uma qualidade boa. Muitos deles estão hoje no YouTube ou no Making Off, em qualidades diferentes: rips de VHS, gravados de exibições em TV etc., como é o caso do próprio Aventuras, que está no YouTube numa qualidade ruim. Essa foi uma decisão importante tomada em conjunto com o montador Luiz Cruz: usar os filmes escolhidos mesmo que a cópia estivesse ruim. É possível perceber a diferença de qualidade entre os filmes que aparecem no Histórias, e isso é um testemunho da condição em que esse material se encontra e da falta de preservação da história do nosso cinema. Se o Museu Nacional, que era um dos nossos patrimônios culturais mais importantes, pegou fogo, imagine como está a preservação desses filmes que nunca foram considerados importantes para a nossa história do cinema...