Haverá uma retrospectiva de Joaquim Pedro de Andrade no IMS Rio de 11 a 24 de outubro de 2018. A mostra, por ocasião dos 30 anos do falecimento do cineasta, apresenta 14 títulos, todos exibidos em cópias restauradas em 35 mm. A programação também passou pelo IMS Paulista de 6 a 23 de setembro de 2018.
Em 1998, há 20 anos, o desejo de realizar uma homenagem aos dez anos de morte de Joaquim Pedro de Andrade com uma retrospectiva integral revelou a precariedade do estado de conservação dos seus filmes e a urgência da restauração de sua obra. Naquela época, não havia cópias de muitos títulos nem havia a possibilidade de gerar novas cópias devido às más condições das matrizes. Naquele ano, dois títulos passaram pela primeira vez por um processo de restauro fotoquímico, que não era, no entanto, suficiente para recuperar o material de danos maiores, como rasgos, riscos profundos e manchas provocadas por fungos, sinais da decomposição física de alguns rolos de matrizes.
Apesar de a película, bem-acondicionada, poder durar mais de 100 anos, é também um material perecível, que, quando armazenado em local úmido e quente, torna-se ambiente ideal para a proliferação de micro-organismos capazes de levar os filmes à “morte”. Por terem chegado ao grau irrecuperável de deterioração, laudos técnicos indicam que alguns rolos de O padre e a moça e todos os de Garrincha, alegria do povo foram descartados; já os negativos de Couro de gato e Brasília, contradições de uma cidade nova eram dados como “desaparecidos”, enquanto diversos outros filmes apresentavam problemas como manchas, rasgos e riscos, porém em estágios menos graves, variáveis caso a caso.
Em 2003, cinco anos após as dificuldades de 1998, Alice, Antonio e Maria, filhos de Joaquim Pedro, se reuniram em torno do problema e elaboraram um plano de ação, que foi chamado de Projeto de Restauração da Obra Completa de Joaquim Pedro de Andrade, e que previa a restauração digital em alta definição para todos os títulos. O projeto tinha como principais parceiros a Cinemateca Brasileira de São Paulo e a Teleimage, estúdio que faria todo o processamento digital.
O período político-econômico era favorável para projetos culturais: com Lula na presidência, Gilberto Gil no Ministério da Cultura e a Petrobras atuante como principal patrocinadora de cultura no Brasil. No campo político, afirmava-se o interesse no patrimônio cultural nacional, especialmente na área de cinema. A Petrobras buscava ações de grande envergadura para comemorar seus 50 anos de existência. Foi assim que o nome de Joaquim Pedro de Andrade, um cineasta que tem sua obra completamente dedicada aos assuntos do Brasil, se encaixou como projeto especial e recebeu o patrocínio integral da empresa, inaugurando uma linha de investimentos que viria a apoiar também a restauração da obra de Glauber Rocha e de Leon Hirszman, além de muitas outras ações de peso na área do patrimônio audiovisual, infelizmente descontinuadas desde o início da crise atual.
A proposta inicial do projeto previa o restauro dos 14 títulos em um ano de intensa atividade, mas, ao final desse ano de trabalho, concluía-se somente o primeiro título do conjunto, Macunaíma, e tinha-se a dimensão do grau de dificuldade e dos desafios técnicos pela frente. Ao final, o projeto levou quatro vezes mais tempo e o dobro dos recursos.
Por ser a primeira vez que se empregava aquela tecnologia de restauro em alta definição no Brasil, diversas complicações inerentes ao restauro custaram a ser solucionadas, em um processo que muitas vezes se resumia a tentativa e erro. Os recursos “milagrosos” do digital induziam a um processamento excessivo da imagem e do som, implicando a criação de artefatos digitais estranhos à natureza da película. Cercados pelos diretores de fotografia dos filmes e de supervisores técnicos gabaritados, muitas vezes os reparos de trechos mais danificados eram árduas conquistas.
Entre filmes de enorme sucesso de público e outros que eram praticamente inéditos, o Projeto de Restauração da Obra Completa de Joaquim Pedro de Andrade recuperou curtas e longas-metragens, documentários e ficções, a ampla organização do acervo do diretor e gerou muito mais do que másteres digitais e um box de DVDs, 14 internegativos e 70 cópias em 35 mm, que hoje podem ser apresentadas no Brasil e que já rodaram os maiores festivais de cinema do mundo. O resgate da cinematografia de Joaquim Pedro é um exemplo da valorização da cultura e do cinema autoral no Brasil, algo que vinha se sedimentando até recentemente tanto em termos de produção quanto em preservação audiovisual.
O Projeto de Restauração da Obra Completa de Joaquim Pedro de Andrade pode ser visto como um microcosmo revelador da própria história da política de preservação audiovisual no Brasil. O quadro de graves problemas anterior ao início do projeto mostra claramente que não havia uma política de preservação no país, que perdia, dia após dia, seus negativos originais em processos inexoráveis de degradação física. A iniciativa e o sucesso de projetos como este foram fundamentais para abrir caminho, unindo profissionais, encontrando respaldo e alegria na recepção da crítica e do público, e finalmente impulsionando atores do governo e das instituições da área para definirem um plano macro de investimento e política de preservação.
Cinema é uma arte da reprodutibilidade, e sua atividade necessita que sejam mantidas as condições ideais para sua reprodução. A política de preservação deveria, portanto, estar prevista como parte inerente da produção audiovisual, e é nesse sentido que caminham os estudos mais propositivos nessa área. Oxalá a política cinematográfica brasileira, que hoje inverna, floresça novamente.
- Maria de Andrade é editora literária, curadora do Projeto de Restauração da Obra Completa de Joaquim Pedro de Andrade.