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Alba Frota ou anjo de arquivo

30 de abril de 2020

Nem todos os escritores tiveram quem os ajudasse a pôr em ordem o papelório que acumularam ao longo da vida, em tempos de caneta e papel, Remingtons e Olivettis. É verdade que arquivistas natos, como Carlos Drummond de Andrade e Otto Lara Resende, não precisavam de anjos protetores. Encarregaram-se, eles mesmos, de separar cartas, fotos, rascunhos, recortes de jornal e outros, dispô-los em ordem cronológica ou, maravilha das maravilhas, anotá-los e acondicioná-los em pastas. Deixaram um manjar para as funcionárias do Departamento de Literatura do Instituto Moreira Salles, às vezes atônitas diante de montanhas de papel sem qualquer tipo de identificação, nem mesmo uma data que lhes poupe horas de pesquisa até descobrir em que ano foi escrito um poema, uma carta ou documento de outro gênero.

Se há escritores que, por prazer, organizam seus arquivos, há aqueles que, sem vocação arquivística, dão conta sozinhos de sua produção. É o caso de Paulo Mendes Campos, que preservou bem sua desordem produtiva. Depois de morto, coube a Joan Mendes Campos, a viúva, dar ordem à papelada que em junho de 2011 viria para o Instituto Moreira Salles. Clarice Lispector rasgou muitos de seus originais, mas conservou uma boa parte em arquivo de aço, com gavetas, além de, a partir de certo momento, passar a contar com a dedicação da amiga Olga Borelli que, não só cuidou dos escritos da amiga, como organizaria a edição de Um sopro de vida, romance póstumo, de versão controversa, publicado em 1999. Os arquivos de Clarice receberiam ainda o zelo de Paulo Valente, um dos dois filhos que ela deixou, hoje dinâmico e generoso divulgador da obra da mãe. Mas, entre os anjos protetores de arquivos de escritores do IMS, não se viu nada parecido com o trabalho de devoção de Alba Frota ao acervo de Rachel de Queiroz.

 

Alba Frota, década de 1920. Arquivo Teresa Maria Frota Bezerra

 

As duas se conheceram no Colégio da Imaculada Conceição, em Fortaleza, onde Rachel chegou aos dez anos de idade. Era quatro mais nova que Alba, nascida em 26 de setembro de 1906. Somadas à órfã Odorina Castelo Branco, aluna no mesmo colégio, se refletem nas personagens de As três Marias, romance de Rachel publicado em 1939. Alba Frota encarnaria Maria José; a órfã Odorina, cuja vida se assemelhava a protagonista de romance triste, seria retratada em Glória, e Rachel, independente e destemida, vestiu a pele da Guta do romance.

“Pequenina e tremente” é como Rachel de Queiroz descreve a personagem Maria José, cujo drama familiar, tal qual na vida real de Alba Frota, não tarda a ser conhecido pelas colegas. O pai da menina, Otávio Menescau da Frota, abandonara os oito filhos e a mulher, Maria Mesquita Frota, em uma boa chácara no bairro da Maraponga, nos arredores de Fortaleza. Alba é retratada como uma mocinha recatada e religiosa. Fora da ficção, seria a "amiga mais próxima"de Rachel de Queiroz. Católica fervorosa, educada e culta, foi chefe do Departamento de Documentação da Universidade Federal do Ceará, mas reservou parte de sua devoção arquivística ao arquivo pessoal da amiga. Não só guardou manuscritos e grande parte de recortes de crônicas de Rachel publicadas durante trinta anos, de 1945 a 1975 na lendária “Última Página” da revista O Cruzeiro, como registrou valiosíssimas anotações biográficas da amiga romancista e cronista. Hoje, todo esse material, composto de 646 itens, integra a Coleção Alba Frota no Arquivo Rachel de Queiroz, no IMS.

 

Rachel de Queiroz e Alba Frota, década de 1950. Arquivo Rachel de Queiroz / Acervo IMS

 

Deve-se, portanto, a Alba Frota a preservação de, pelo menos, dois documentos preciosos desse arquivo: o álbum com fotos de Clotildinha, a filha de Rachel que viveu apenas um ano e meio, e os originais manuscritos de dez poemas, datados de 1928, com temática social que a autora desenvolveria nos romances, sobretudo em O Quinze, de 1930. Não é tão conhecido o fato de que, antes de estrear com a prosa vigorosa e enxuta desse livro consagrador, a autora publicara poemas nos jornais de Fortaleza. Aos dezessete anos de idade, tateava: buscava a forma de expressão adequada. Como era comum entre as moças, enveredou pela poesia, mas cedo percebeu que não era poeta. Deixou os versos de lado e começou a escrever sobre o drama da seca. Encontrou aí a sobriedade natural que caracteriza a sua prosa.

Houve, porém, quem não esquecesse os poemas da adolescente. Na década de 1990, durante uma conferência na Universidade Federal do Ceará, Rachel reagiu, bem-humorada, depois que o professor e crítico literário Sânzio de Azevedo, à mesma mesa, leu um poema seu: “O Sânzio acaba de me caluniar, me chamando de poeta”. Em entrevista publicada nos Cadernos de Literatura Brasileira, do IMS, ela diria: “Poesia para mim é quase uma religião, é um gênero sagrado, inacessível, e tenho poucos santos dentro dele. O Bandeira é um”.

Se Sânzio de Azevedo insistia em mencionar os poemas, não seria Alba Frota a deixar perder-se a produção inicial de Rachel de Queiroz. Guardou os poemas em uma pasta e, com sua própria letra, escreveu a data e o título com que a autora pretendia publicá-los: Mandacaru. Em 2010, por ocasião do centenário da escritora cearense, o Instituto Moreira Salles publicou o livro, cujo valor está em mostrar o abismo entre a eloquência dos versos e a sobriedade da narrativa que ela desenvolveria depois, além de revelar que, desde cedo, a temática de sua predileção era de cunho social. Em Mandacaru fermenta o tema de O Quinze e de crônicas antológicas que ela escreveria na sua fértil carreira em O Cruzeiro.

 

Capa do livro Mandacaru, de Rachel de Queiroz

 

Anotações minuciosas de Alba Frota, também encontradas no arquivo de Rachel, sugerem que ela pretendia escrever uma biobibliografia comentada da amiga, projeto interrompido com a morte, em 1967, no mesmo acidente aéreo que vitimou o ex-presidente Castello Branco, quando ambos voltavam de uma visita à fazenda de Rachel, a famosa Não me Deixes, na cidade cearense de Quixadá. Na crônica “Albinha”, com que a anfitriã, ainda em choque, homenageou a amiga no Correio do Ceará de 1º de agosto, dias depois do acidente, ocorrido em 18 de julho, escreveu: “Eu lhe dizia brincando que papel impresso era para ela como palha benta. E era verdade. [...] E, sem ser uma criadora, como disse, fez mais pelas letras e pelas artes do que muita gente de nome celebrado”.

 

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Crônica Albinha, de Rachel de Queiroz. Arquivo Rachel de Queiroz / Acervo IMS

 

De fato. Com sua presença discreta e vibrante a um só tempo, Alba Frota cultivava os escritores de sua terra. Lia-os com vivo interesse e, sobretudo, animava-os com sua presença amiga, sem ter, ela mesma, influência em mercado editorial ou qualquer prestígio político. Se estava no Rio de Janeiro, era vista sorridente em fotos das famosas reuniões da Livraria José Olympio, a editora de Rachel de Queiroz. Talvez hoje, vendo essas fotos, não se saiba quem é aquela mulher que aparece retratada em reuniões festivas de escritores. Ela não fazia questão do protagonismo.  Estava feliz com a definição de Murilo Mendes, para quem a “a amizade é uma das belas-artes”. E não esquecia os artistas plásticos do Ceará, de quem adquiria obras, hoje nas casas de sobrinhos. São madonas simples e expressivas, santos carregados de simbologia em esculturas toscas e belas, um mundo oculto apreendido pelo fino olhar de Alba Frota.

É desse modo, de olhar atento qual anjo protetor, que ela ressurge no arquivo de Rachel de Queiroz. Para as arquivistas do IMS, se não puder ser tanto, já constitui motivo de alegria deparar com querubins e serafins, como no arquivo de Ana Cristina Cesar, que durante muito tempo esteve sob a guarda do poeta Armando Freitas Filho, ou no de Erico Verissimo, que recebeu os cuidados da professora Maria da Glória Bordini.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.


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