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Caderno de arabescos: Clarice Lispector

18 de outubro de 2022

“Não posso ficar em arabescos”. Lida assim, a frase soa bem. Afinal, além de “arabescos” ser uma palavra sonora, remete a desenhos em que linhas sinuosas frequentemente se entrecruzam com flores. Mas o termo, de sentido essencialmente ornamental, pode ganhar conotação pejorativa se empregado para definir um texto tosco, confuso. É nessa acepção que a frase, escrita por Clarice Lispector em um minúsculo bloco de apontamentos, de 1967, vem carregada da angústia da escritora que, naquele momento, refletia sobre seu estilo literário.

Páginas 2 e 4 do bloco de notas de Clarice Lispector, com anotações fragmentadas. Na que abre o caderno, à esquerda, citação do poeta Henri Michaux. Acervo Clarice Lispector/ IMS

É sabido que Clarice recorria a cadernos, ou mesmo a pedaços de papel, para registrar ideias, frases, às vezes inteiras, que usaria em sua obra de contos, crônicas e, principalmente, romances. Ao mesmo tempo, anotava compromissos, fazia lista de compras, assim como providências a serem tomadas para uma festa em sua casa. Esse tipo de uso de caderno, aliás, não é incomum entre escritores, embora haja características marcantes em cada um deles: Otto Lara Resende, de tão metódico, fazia diário organizadíssimo durante viagens, por mais acidentadas que fossem; Erico Verissimo desenhava roupas de suas personagens; Paulo Mendes Campos fichava leituras, com método, deixando clara a origem de sua erudição; e Ana Cristina Cesar chegava a preparar edições nesses itens escolares.

Um caderno de Clarice, sobre o qual escrevi com o título Diário de Lisboa, contém o relato da experiência que ela, recém-casada, viveu na viagem ao encontro do marido, em Nápoles, em seu primeiro posto diplomático. A caderneta de que tratamos agora é, na verdade, um pequeno bloco de notas registrado sob o número 003573, no arquivo da escritora, no IMS. Não há data, mas anotações de alguns dias da semana e do mês na última página, somadas à consulta em calendários antigos levam à conclusão de que ela o fez em 1967. Nesse ano, Clarice estava mergulhada em forte depressão, consequência do acidente que sofrera no ano anterior, quando, ao adormecer com um cigarro aceso, provocara um incêndio em casa que lhe fez queimaduras graves, sobretudo na perna e na mão.

O essencial do bloco de notas se concentra em torno de duas personalidades: o crítico literário francês René Bertelé (1908-1973), que muito se ocupou da obra do poeta belga Henri Michaux (1889-1984), a segunda personalidade citada. É de Bertelé uma espécie de antologia intitulada Henri Michaux, da prestigiosa série Poètes d’Aujourd’hui n.5, Paris, Seghers, de 1949. E também é dele a frase de abertura da caderneta, abaixo, sobre Michaux, em tradução livre:

"Pénétrons plus avant dans son monde à lui, puis qu'il est un de ces rares poètes qui aient réussi ce que tout d'autres nous annoncent sans toujours nous offrir vraiment: un monde qui ne ressemble pas à celui que nous connaissons et qui s'impose à nous pourtant avec la même évidence". [“Penetremos antes no seu mundo, pois ele é um dos raros poetas que conseguiram o que outros nos anunciaram sem oferecer verdadeiramente: um mundo que não parece com o que nós conhecemos e que, porém, se impõe a nós com a mesma clareza”].

Terá Clarice lido Qui je fus, o primeiro livro de Henri Michaux, lançado em 1927, e em que ele questiona a sua própria identidade, assim como a possibilidade de “uma forma de ficção reflexiva”, o que naturalmente interessava muito à autora de A paixão segundo G.H.? Nesse livro de estreia de Michaux, essencialmente de poesia, ele inclui nove textos de prosa, espécie de caderno de bordo de uma viagem interior, em que, a certa altura, admite que a presença de um duplo não é uma projeção do eu. Ao contrário, é uma interiorização do que vem de fora, a presença de um não eu.

"Rien de l'imagination volontaire des professionnels. Ni thèmes, ni développements, ni construction, ni méthode”, [“Nada da imaginação voluntária dos profissionais. Nem temas, nem desenvolvimentos, nem construção, nem método”], escreve Henri Michaux, em consonância com as reflexões da própria Clarice, mais adiante. Consta que, certa vez, Bertelé perguntara a Michaux como sua poesia e sua pintura eram feitas “de nada”, e ele lhe teria respondido: “Sim, feitas de nada, ou seja, do pouco que me aparece como real, verdadeiro, existente”.

Quanto às reflexões de Clarice sobre sua própria obra, há uma vantagem. É que tendo sido a autora também cronista, além de romancista e contista, e sendo “impossível, na crônica, deixar de ser pessoal”, como disse Rubem Braga, ela pôde expressar, na produção em jornal, muito da sua angústia literária: “Porque, realmente, como é que se escreve? que é que se diz? e como dizer? e como é que se começa? e que é que se faz com o papel em branco nos defrontando tranquilo?”, interroga-se ela em “Como é que se escreve?”

Mas o penar não era apenas o medo do papel em branco. Talvez ela tenha até sofrido menos desse sentimento que atormentou Flaubert do que da inquietação sobre o estilo, apesar de, por ocasião das notas no bloquinho, já ser a consagrada autora dos contos de A legião estrangeira e de A paixão segundo G.H.

Toda a sua afinidade com o pensamento de Henri Michaux, para quem, como já se viu aqui, não deve haver “nem construção, nem método”, está explícita na crônica “Ficção ou não”, quando ela afirma que não lhe interessa a moldura, ou seja, a ambientação própria do romance:

Tornar um livro atraente é um truque perfeitamente legítimo. Prefiro, no entanto, escrever com o mínimo de truques. Para minhas leituras prefiro o atraente, pois me cansa menos, exige menos de mim como leitora, pede pouco de mim como participação íntima. Mas para escrever quero prescindir de tudo o que eu puder prescindir: para quem escreve, essa experiência vale a pena.

Por acaso, segue ela na mesma crônica, uma obra deixa de ser ficção “apenas por não contar uma série de fatos constituindo um enredo?” Seu interesse é muito maior na trajetória interior da personagem, assim como para o poeta belga. Na crônica “Respiração”, de 1969, ela ousa definir: “Escrever é saber respirar dentro da frase. É pôr algum silêncio tanto nas linhas como nas entrelinhas para que o leitor possa respirar comigo, sem pressa, adaptando-se não só ao seu ritmo como ao meu, numa espécie de contraponto indispensável”.

Ainda sobre a temática literária, mas com outro enfoque, Clarice, nesse bloco de notas, revela perturbação com a análise que uma pessoa, não se sabe quem, teria feito de sua obra. Se não análise, pelo menos demorada opinião dada por alguém, que ela reproduz:

Que minha coisa é que eu sou "desinteressada" — que não pareço ter ideias básicas ou ideias, parece tudo solto e todo o meu trabalho é o de fazer ligações entre essas coisas que não têm evidentemente ligação; que eu não tenho interesse por problema coletivo; que não tenho [enredo]; ele também parou várias vezes de ler, por um motivo ou por outro, e recomeçou do começo, porque tanto fazia ler um capítulo como outro. [...] “A impressão é a de que ele acha uma beleza inútil e um pouco preciosa e vazia. Ele não sabe ‘para que’ eu escrevo – essa é a impressão”.

E diante do impasse, conclui: “Ou deixo definitivamente de escrever ou escrevo de outro modo. Não posso ficar em arabescos. Se eu não tenho mais nada a dizer, que eu morra”.

A afirmação é contundente, mas ela teria muito a dizer nas crônicas que, naquele 1967, começou a escrever para o Jornal do Brasil, a convite de Alberto Dines. No ano seguinte, em “Diálogos possíveis com Clarice Lispector”, passaria a entrevistar personalidades do mundo artístico e político para a revista Manchete, intensificando sua colaboração na imprensa: “Sinto-me tão perto de quem me lê”, dizia, com sua atividade na imprensa.

Capa do bloco de notas. Entre as anotações variadas, uma lista de compras com refrigerantes e pastéis. Acervo Clarice Lispector/ IMS

 

Para não fugir ao espírito fragmentário da caderneta de que tratamos aqui, o leitor depara com a anotação do endereço de Garina Simon Studenic, indicado pelo romancista Lucio Cardoso, grande amigo de Clarice. Casada com Hubert Studenic, Garina e o marido chegaram ao Brasil, fugidos da guerra, em 1941, graças à ação do embaixador brasileiro em Marseille, Luís Martins de Souza Dantas, que lhes concedeu vistos e identidades falsas. Depois de passarem pelo Rio, onde conheceram Lotte e Stephan Zweig, instalaram-se em Barbacena, Minas Gerais, e em seguida, em Penedo. Com o tempo, recuperaram seus verdadeiros nomes: Hugo Simon, banqueiro que, antes da guerra, se projetara em Berlim também como um dos maiores colecionadores de arte da cidade, e sua mulher, que, na verdade, se chamava Gertrud Simon. A história desses refugiados serviria de base para o romance O  remanescente, do historiador de arte Rafael Cardoso, bisneto do casal.

Não faltou ao caráter de fragmentos do bloco de notas uma lista de itens a serem comprados e de providências a serem tomadas. Provavelmente ela preparava uma festa quando anotou o número de coca-colas e de guaranás caçula que deveria comprar, assim como os pastéis, ameixas recheadas que devia encomendar.

Curiosamente, não há, na biblioteca de Clarice, no IMS, nenhum livro de Henri Michaux ou de René Bertelé, cujos nomes não constam das biografias da escritora até agora publicadas. Constata-se a mesma ausência em relação aos Studenic. Isso mostra que um bloquinho despretensioso guarda muito da vida e dos interesses de uma autora. Até mesmo de uma que, sendo grande, definia-se na crônica “Inspiração”: "Acho que eu não poderia ser escritora, sou tão... tão resumida!”

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.

Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.

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