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Celebrando Otto Lara Resende

25 de abril de 2022
Otto Lara Resende. La Coupole, Paris, 1973. © Alécio de Andrade

Otto Lara Resende (1922-1992) não era "homem de ter uma opinião no bolso e outra na lapela". No papel de pai, considerava-se, "modéstia à parte, uma mãe exemplar". Amigo leal, defendia que "amizade é como esmola; pouca ou muita, não se recusa". Como jornalista, definia-se um "especialista em ideias gerais". Cronista delicioso, escritor febril de cartas (dizia ser "viciado em cocaína postal"), ele certamente faz uma falta tremenda no Brasil dos anos 2020. Mas, como vaticinou em outra de suas frases geniais, "a morte é, de tudo na vida, a única coisa absolutamente insubornável". 

Neste ano que marca o seu centenário de nascimento (em 1/5) e três décadas de morte (em 28/12), Otto é lembrado pelo site Crônica Brasileira e vem sendo tema de vários projetos. A começar por um documentário, em fase de finalização, realizado por Helena Lara Resende, filha do escritor. Otto, de trás para diante, com estreia prevista para este ano, é uma espécie de plot twist na trajetória profissional da jornalista e roteirista. "Eu dizia que jamais iria fazer alguma coisa sobre o meu pai", conta ela, a mais nova de quatro irmãos – antes dela vieram André, Bruno e Cristiana. Mas a moça temporã que seria, “sozinha, toda uma razão de vida" –, como afirmou o pai em depoimento autobiográfico a Paulo Mendes Campos –, mudou de ideia.

Helena usou justamente o longo depoimento dado ao amigo também escritor como fio condutor do filme, cuja direção divide com o cineasta Marcos Ribeiro, diretor de documentários como A obra de arte (2009) e Quem pode jogar? (2020). A entrevista iniciada com a pergunta "Quem é Otto Lara Resende?" foi publicada na edição de 26 de abril de 1975 da revista Manchete, e mais tarde incluída no livro O príncipe e o sabiá (2017), antologia de 60 perfis biográficos de sua autoria. Nela, Otto fala caudalosamente sobre assuntos variados, da mineirice à literatura, da política à morte, da família e dos amigos, forjando várias de suas tiradas que ecoam até hoje como exemplos do frasista brilhante que era. Helena também aproveitou algo mais íntimo: pastas de bilhetes do pai endereçados a ela – "no início tudo me batia, eu ficava péssima, chorava", conta. E ainda uma entrevista filmada com a mãe, Helena Pinheiro de Lara Resende, realizada no início de 2019, na fase embrionária do projeto. Além disso, há o depoimento do jornalista e crítico Humberto Werneck, organizador de O Rio é tão longe (2011), volume que reúne cartas escritas por Otto a Fernando Sabino num período de mais de 30 anos.

Helena Lara Resende e, à direita, Marcos Ribeiro, diretores de Otto, de trás para diante. No centro, o jornalista e crítico Humberto Werneck, que dá um depoimento sobre o escritor para o documentário. Foto: Gabriel Lara

 

Ao longo do processo de pesquisa, Helena passou por uma espécie de descoberta da obra de Otto.  

"Eu tinha uma coisa de só olhar para ele como meu pai, de não me interessar pelo escritor. Como eu era muito jovem quando ele morreu (24 anos), não tinha lido O braço direito (único romance de Otto, cuja primeira versão foi publicada em 1963), não tinha esse interesse. Depois que ele morreu eu não consegui mexer naquilo. O projeto do filme me trouxe a descoberta do escritor. Li tudo, agora sei tudo. Entrei nas cartas, nas relações de amizade, material de uma vida inteira. Mas fiz questão que o filme falasse da obra. Porque o Otto era muito social, e muitas vezes isso aparece em primeiro plano quando se fala dele."

De fato, todo mundo parece conhecer o personagem Otto Lara Resende  – o jornalista boêmio, amigo de Nelson Rodrigues, cujo nome consta até do título de uma das peças do dramaturgo (Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária) –, mas poucos parecem ter lido seus textos. Em Otto, de trás para diante, a obra do autor ganha importância através da participação de dois atores. Julia Lemmertz lê textos do autor, e Rodolfo Vaz, egresso do grupo de teatro mineiro Galpão, interpreta o próprio Otto em seu escritório, reconstruído pelos diretores a partir de itens da família e de peças garimpadas no acervo do escritor sob a guarda do IMS, como sua máquina de escrever. O acervo Otto Lara Resende foi o primeiro de literatura a chegar ao instituto, em 1996, e um dos maiores da área: é formado de biblioteca de 7.097 itens, entre livros e periódicos, e de arquivo com produção intelectual contendo 1.897 documentos, entre os quais manuscritos e datiloscritos em diferentes versões, correspondência com 8.360 itens e 19 documentos pessoais, 6.100 recortes de jornais e de revistas, 2.166 fotografias, 54 desenhos de artistas como Millôr Fernandes e Ziraldo, além de duas monotipias em nanquim de Mira Schendel.

Julia Lemmertz e Rodolfo Vaz durante as filmagens do documentário Otto, de trás para diante. A atriz lê trechos de obras do escritor, e o ator interpreta o personagem-título. Fotos: Gabriel Lara

 

A entrevista a Paulo Mendes Campos que norteia o documentário é a alma de outro empreendimento cultural previsto para este ano, o monólogo Eu, Otto, a cargo do dramaturgo Amir Labaki. Labaki, que concilia a escrita para o teatro com a direção e curadoria de um dos mais importantes festivais de cinema do Brasil, a mostra de documentários É Tudo Verdade, criado por ele em 1996, conheceu o texto durante o período de confinamento da pandemia, quando decidiu ler a ficção e as cartas de Otto Lara Resende, num projeto pessoal de "preencher lacunas".

"Como quase todo mundo da minha geração, me aproximei do Otto pelo jornalismo, as crônicas, no fim dos anos 70. Só recentemente, na pandemia, me perguntei 'o que estou devendo?', e um desses autores era o Otto. Fui atrás do romance, dos contos e das cartas, e me deparei com esse texto. Estava lendo de madrugada, e me disse: isso é teatro! No dia seguinte comecei a trabalhar no projeto", conta Amir. 

O longo depoimento de Otto ao amigo entrará praticamente na íntegra. Labaki fará apenas alguns ajustes, para deixar mais orgânico o texto no palco e tornar acessíveis ao espectador alguns trechos um tanto "cifrados", algo parecido com o que fez na sua peça de estreia, Lenya (2008), uma trajetória da cantora alemã Lotte Lenya a partir de suas cartas e entrevistas. "Não há melhor retrato do Otto do que esse autorretrato", diz ele, agora munido de conhecimento para defender que o escritor ainda não tem o posto merecido como ficcionista. "Merece subir alguns degraus", diz, ecoando uma sensação que parece ser senso comum nos meios literários.  

 

A entrevista concedida por Otto Lara Resende a Paulo Mendes Campos, publicada na revista Manchete, edição de 26/4/1975, vai virar um monólogo pelas mãos de Amir Labaki. Foto: Arquivo da Biblioteca Nacional

 

Certamente a porção do acervo de Otto Lara Resende mais explorada por pesquisadores são os cadernos pessoais e as cartas que revelam a intimidade do autor, principalmente em relação às angústias provocadas pelo ato da escrita. Ao volume de cartas de Sabino reunidas por Werneck se somará agora uma coletânea organizada por Elvia Bezerra. Coordenadora de literatura do IMS por dez anos, de dezembro de 2009 a novembro de 2019, Elvia teve a oportunidade de perscrutar o material doado em 2014 para produzir vários textos a partir do acervo. Também organizou (e assina o posfácio) de Carta a Otto ou um coração em agosto, publicação do IMS com o fac-símile da carta escrita ao amigo por Paulo Mendes Campos em agosto de 1945, recém-chegado ao Rio.

O livro sobre o qual ela se debruça agora, ainda sem data de lançamento e com o título provisório de Otto, retrato escrito, reunirá cem cartas de Otto enviadas a seis amigos, escolhidos entre os seus interlocutores mais frequentes: Fernando Sabino, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos – com quem formava o que batizou "os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse" –, e ainda Dalton Trevisan, Rubem Braga e Francisco Iglésias

"Não é a troca de cartas. São as cartas que o Otto enviou a eles", explica Elvia. "Quando conversamos sobre o projeto, o Samuel (Titan Jr, coordenador editorial do IMS) achou que escolhendo apenas cartas que o Otto escreveu, uma seleção pequena, de cem cartas, algumas delas longas, você acaba de certo modo expondo um perfil da pessoa, enquanto que a troca não teria esse efeito", diz ela. 

 

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Para selecionar as 100 cartas incluídas no livro, Elvia leu 1.801 missivas – 928 cartas enviadas por Otto a seus amigos, e mais 873 recebidas por ele, para consulta e cotejamento de dados. Contou com a ajuda da família do escritor para checar informações e tirar dúvidas, e, no caso de Dalton Trevisan, único dos seis correspondentes do livro ainda vivo, com a assistente do escritor, Fabiana Faversani, que intermediava o contato com o autor de O vampiro da Curitiba.  Guiou-se, para a seleção final, por três critérios bem definidos, priorizando aquelas em que se destacassem três especificidades de Otto: o escritor atormentado, o grande amigo e o homem dedicado à família.

"Privilegiei as cartas que pudessem revelar em primeiro lugar o Otto escritor, porque ele foi muito atormentado com a atividade literária, seus contos, seu romance. Principalmente nas cartas ao Dalton Trevisan esse traço se revela com mais clareza. Embora tenham sido grandes amigos, eles têm uma correspondência extremamente literária, o assunto entre eles foi literatura. Diferentemente do que acontece com Hélio Pellegrino, em que o tema predominante foi a amizade. Encontramos nas cartas ao Hélio coisas muito bonitas, o Otto foi um grande amigo. Era o amigo que escrevia dezenas de cartas e cobrava dos amigos a amizade."

A terceira faceta aparece menos nas trocas, mas com intensidade, diz ela.

"O Otto era muito apaixonado pela família, pela mulher e os quatro filhos. Isso não ocupa muito a correspondência, mas quando aparece é com muita força. Como eu conheço os cadernos escritos por ele, como o diário da viagem em que voltou de navio ao Rio depois de uma temporada servindo na Embaixada do Brasil em Bruxelas, vi que se complementavam." 

 

Nani Rubin é jornalista e integra a Coordenadoria de Internet do IMS


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