No momento em que o Centro do Rio de Janeiro passa por grandes intervenções urbanas que vão mudando aos poucos seu traçado, o Instituto Moreira Salles promove, no Paço Imperial, um mergulho em uma outra época de profundas transformações na área. A exposição O Paço, a praça e o morro, com curadoria de Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS-RJ, apresenta até dia 28 de agosto 200 trabalhos de fotógrafos consagrados e anônimos que registraram, entre o fim do século XIX e a década de 1920, a evolução da região onde a cidade nasceu e a partir da qual se desenvolveu. São imagens do próprio Paço Imperial, da Praça XV de Novembro – o antigo Largo do Paço –, e de um sítio histórico que é hoje apenas uma pálida lembrança na memória dos cariocas: o Morro do Castelo, marco fundador do Rio, totalmente removido da paisagem, em 1928, em nome da expansão e modernização urbanas.
As imagens, pertencentes ao acervo do IMS-RJ, mostram a vida fervilhante nas ruas, nos mercados, no entorno da Praça XV e no próprio Morro antes e depois das reformas implementadas pelo prefeito Pereira Passos, principalmente a abertura da Avenida Central, em 1904. Marc Ferrez, Augusto Malta e outros nomes conhecidos como Guilherme Santos e Georges Leuzinger, além de fotógrafos anônimos e amadores, documentaram detalhadamente o bota-abaixo decorrente da iniciativa, que destruiu moradias e outros prédios no caminho da grande avenida. A reforma seria o início do fim cruel do Morro do Castelo, vítima do processo de expansão e gentrificação da cidade. Sua remoção, sob a justificativa de melhorar o saneamento e a circulação de ar na metrópole, ajudava a ratificar a entrada da capital da República na modernidade, celebrada também com a Exposição Internacional de 1922, para a qual foram construídos vários prédios no Centro do Rio, outro motivo para o desmonte do morro.
A exposição foi dividida em dois blocos: um para o Paço e seu entorno – há belos registros do Arco do Teles, do Chafariz do Mestre Valentim, do Mercado da Praia do Peixe, da área portuária –, e outro apenas para o Morro do Castelo. Além das fotografias, alguns objetos dispostos em vitrine ajudam o visitante a voltar ao passado. Estão entre eles uma câmera pertencente a Marc Ferrez; dois negativos em vidro de imagens que fazem parte da mostra; a réplica de uma câmera escura que ficará posicionada numa das janelas da instituição e poderá ser usada pelo público, assim como estereoscópios, nos quais será possível ver em 3D imagens da época, num revival da técnica fotográfica desenvolvida em meados do século XX.
O curador Sergio Burgi lembra que a exposição é um desdobramento da mostra Rio: primeiras poses – Visões da cidade a partir da chegada da fotografia (1840-1930), que ficou em cartaz no IMS-RJ entre fevereiro de 2015 e fevereiro de 2016, e também já documentava as transformações da cidade. Dessa vez, o foco é mais específico. “Não pretendemos fazer uma aula de história, mas contextualizar a relação da cidade com o Paço, a praça e o Morro do Castelo”, conta ele. “Cronologicamente a cidade começa no Morro e desce em direção ao Largo do Paço, quando essa região vai assumir seu papel político, de protagonista da cidade. E o Morro começa a perder relevância, vira um local de difícil acesso, com moradias de menor valor, as casas maiores se transformando em casas de cômodos, mudanças que em última instância levam às decisões de removê-lo. E obviamente também há grandes interesses imobiliários por trás da decisão”.
A última sala da exposição é tomada por projeções que mostram, simultaneamente, duas sequências de imagens: uma anterior à demolição do Morro, e a outra do trabalho de remoção propriamente dito, com registros impressionantes das ruínas, da maquinaria, das explosões de dinamite e dos imensos jatos de água usados para desmanchar a terra, aproveitada nos aterros de expansão da cidade em direção ao mar. Acompanhando as imagens, um texto narrado pelo poeta Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do IMS, reúne trechos de escritos de várias épocas e autores sobre o local, desde a fundação da cidade até a polêmica causada pela decisão da remoção, que desabrigou quatro mil pessoas. “O Morro sente-se condenado (…) Percebe que virou negócio, que o verdadeiro tesouro oculto em suas entranhas não é a imagem de ouro maciço de Santo Inácio e sim o arrasamento. E desconfia que seu fim está próximo. Os homens de hoje são negocistas sem alma. Querem dinheiro. Para obtê-lo venderão tudo, venderiam até a alma se a tivessem. Como pode ele, pois, resistir à maré, se suas credenciais – velhice, beleza, pitoresco, historicidade – não são valores de cotação na bolsa?”, escreveu Monteiro Lobato em 1920.
O suposto tesouro oculto, aliás, alimentou durante séculos a fantasia da população. Dizia a lenda que peças valiosas haviam sido enterradas pelos jesuítas sob um convento, e que eles partiram sem carregar as preciosidades. Com a destruição do lugar, o tesouro fatalmente seria descoberto. Um dos trechos selecionados inclusive é de “O subterrâneo do Morro do Castelo”, de Lima Barreto, folhetim que o autor publicou em 1905, quando operários que trabalhavam na destruição de parte do morro para a abertura da Avenida Central descobriram a entrada de uma galeria, realimentando o mito.
Machado de Assis, o mais celebrado dos escritores brasileiros, também faz parte da seleção. “Creio neles. Em vida fui amigo de dinheiro, mas havia de trazer mistério. As grandes riquezas deixadas no Castelo pelos jesuítas foram uma das minhas crenças da meninice e da mocidade; morri com ela, e ainda hoje ainda a tenho. Perdi saúde, ilusões, amigos e até dinheiro; mas a crença nos tesouros do Castelo não a perdi”, escreveu ele numa crônica de 1893. E está no áudio também o início do seu romance “Esaú e Jacó”: “Era a primeira vez que as duas iam ao Morro do Castelo. Começaram de subir pelo lado da Rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglês, que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da metrópole e do mundo.”
Apesar da destruição discutível do Morro do Castelo, que se erguia no trecho em que está hoje o Terminal Menezes Cortes e seguia até a Rua Santa Luzia, o curador da exposição reforça um cuidado de preservação visível no Rio: segundo ele, é uma das poucas cidades brasileiras que reteve, do ponto de vista do patrimônio, marcos que não são apenas um ou outro edifício, mas sim áreas inteiras. “O trecho que segue do Paço em direção à Rua do Ouvidor, com o Arco do Teles ali, se conectando a um conjunto importante que inclui o prédio do Centro Cultural Banco do Brasil, dos Correios, é um circuito importante”, afirma Burgi. “O Rio oferece essas experiências reais do passado, algo que em São Paulo, por exemplo, não existe há muito tempo”.
A ideia da mostra, aliás, é fazer não apenas com que o público mergulhe no passado, como também aproveite o presente. Um folheto distribuído na exposição mostra um pequeno mapa que traz imagens do entorno da Praça XV, como a Estação das Barcas, o Arco do Teles, o Chafariz do Mestre Valentim. “É uma brincadeira, um pouco na intenção de que as pessoas saiam da mostra e caminhem até esses locais, estabelecendo uma relação direta entre as imagens e o espaço próximo”.
Serviço: O Paço, a praça e o morro
Local: Paço Imperial, Praça XV de Novembro 48.
Telefone: (21) 2215-2093.
Visitação: 24 de junho a 28 de agosto de 2016. De terça a domingo. Até 4 de agosto, das 12h às 19h; a partir de 5 de agosto, das 11h às 19h. Entrada franca.
Mais
Acervo de Augusto Malta no IMS
Acervo de Guilherme Santos no IMS
Acervo de Georges Leuzinger no IMS
Acervo de Marc Ferrez no IMS
Brasiliana Fotográfica: O Paço, a praça e o morro
Exposição O Paço, a praça e o morro
Exposição Rio: primeiras poses