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Hans Gunter Flieg, 1923-2024

4 de setembro de 2024 |

 

Hans Gunter Flieg, 1975. São Paulo, Brasil. Foto de Morinari Kawagushi. Acervo IMS

 

Nascido em Chemnitz, na Alemanha, em 3 de julho de 1923, e radicado no Brasil desde 1939, Hans Gunter Flieg morreu nesta quarta-feira, dia 4 de setembro, aos 101 anos. Foi uma vida longa e produtiva, que capturou uma parte importante da história de São Paulo durante a modernização da cidade. Flieg fotografou maquinário industrial, fábricas de automóveis, peças e produtos, além da arquitetura que mudou a cara da capital paulista nos anos 1950 e 60, sempre com um rigor formal que se tornou sua marca registrada.

A fotografia, profissão que o faria bastante requisitado em São Paulo, não foi algo que surgiu naturalmente. Flieg tinha 15 anos e ainda estava na Alemanha quando ganhou do pai uma Leica C3, com a qual passou a fotografar eventos familiares. No documentário Canto dos exilados (2015), que conta a trajetória de artistas e intelectuais europeus que refizeram suas vidas no Brasil, Flieg, cidadão brasileiro a partir de 1965, dá uma resposta surpreendente ao diretor Leonardo Dourado. Em certo momento, Dourado pergunta quando a versão jovem do então nonagenário Flieg percebeu que iria ser fotógrafo. A resposta: "Nunca".

No começo, Flieg de fato encarou a fotografia como um "passaporte" para se virar no Brasil, um país cuja língua ele não conhecia. Sua família — os pais Karl e Eva e o irmão Stefan, seis anos mais novo — tinha imigrado devido à violência crescente na Alemanha nazista. A perseguição aos judeus tinha se exacerbado na chamada Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938, quando estabelecimentos comerciais de judeus foram vandalizados. Pensando em como sobreviveria no novo país, Flieg teve dois meses de aulas na casa de Grete Karplus, fotógrafa do Museu Judaico de Berlim, que já tinha sido fechado pelos nazistas.

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A família Flieg chegou ao Brasil em 8 de dezembro de 1939. O jovem Hans Gunter trouxe na bagagem alguns livros, a Leica e uma Linhof. Chegou a estagiar com Peter Scheier – outro judeu que deixara a Alemanha fugido do nazismo, em 1937 – mas antes trabalhou em empresas de artes gráficas, acumulando conhecimentos sobre técnicas de impressão e análise e separação de cor, que o tornaram "extremamente exigente em relação à qualidade de imagens". Quem faz essa observação é o jornalista e crítico de fotografia Moracy Oliveira, autor de um extenso perfil sobre Flieg publicado em 2014 no blog Olhavê.

"Sua atuação desde o princípio é marcada pelo rigor técnico, composições precisas e pela limpeza das imagens, uma de suas obsessões, a ponto de, em tom de brincadeira, se denominar um catador de pulgas pelo hábito de eliminar de negativos as micrométricas manchas comuns em filmes revelados."

Esse preciosismo com a composição e a limpeza das imagens pode ser observado em um acervo de cerca de 35 mil imagens, composto por negativos originais, ampliações e álbuns editados por ele. Guardião do conjunto desde 2006, o IMS já realizou duas exposições a partir desse material: Flieg fotógrafo. Indústria, design, publicidade, arquitetura e arte na obra de Hans Gunter Flieg. Fotografias do acervo do Instituto Moreira Salles, com cerca de 220 imagens, em parceria com o Museu de Arte Contemporânea da USP, e Flieg. Tudo que é sólido, que esteve em cartaz de 22 de agosto de 2023 a 28 de janeiro de 2024 no IMS Paulista. Flieg também foi um dos quatro fotógrafos na exposição Modernidades fotográficas, 1940-1964, ao lado de José Medeiros, Thomaz Farkas e Marcel Gautherot.

A exposição Flieg. Tudo que é sólido, exibida no IMS Paulista de 22 de agosto de 2023 a  28 de janeiro de 2024, homenageou os 100 anos do fotógrafo

Flieg ganhou destaque registrando maquinário industrial pesado e funcionários trabalhando fábricas de automóveis, como a Willys-Overland do Brasil, e usinas hidrelétricas, além de peças e produtos. Foi também excelente fotógrafo de publicidade, com trabalhos para algumas das maiores agências de sua época, como a Standard e a Thompson. Suas imagens de produtos que parecem flutuar no espaço, como as que mostram utensílios de vidro da Multividro ou um jogo de ferramentas Heinz, criaram um paradigma na área. Coordenador de Fotografia do IMS e curador da exposição Flieg. Tudo que é sólido, Sergio Burgi nota que essas imagens ganharam autonomia com o passar do tempo, deixando de ser apenas documentação industrial para adquirir também um papel formal e estético, inserindas no circuito das artes – pela qualidade e pela consistência do trabalho. "Elas se tornam hoje referências para um olhar que transcende o aspecto documental e figurativo", diz.

Arquitetura e arte também foram documentadas por Flieg, fotógrafo oficial da I Bienal Internacional de Arte de São Paulo, realizada em 1951 num pavilhão provisório na Avenida Paulista, onde mais tarde seria erguido o Masp. Registrou ainda todas as etapas da construção do prédio projetado pela arquiteta italiana Lina Bo Bardi para a instituição e inaugurado em 1968. Também fotografou outros prédios icônicos, como a fábrica da Duchen Peixe, de biscoitos e gêneros alimentícios (único projeto industrial de Oscar Niemeyer, foi demolida em 1990) ou o edifício sede da Pirelli, projeto do ucraniano Gregori Warchavchik, com história semelhante à sua – chegou ao Brasil no fim dos anos 1920, fugido da perseguição antissemita, no seu caso associada à revolução bolchevique.

O fotógrafo manteve seu estúdio no bairro Vila Mariana até 1988, quando se aposentou. Por lá, mais no início da carreira, passaram políticos e artistas, ainda que esta faceta de retratista seja menos conhecida. Jânio Quadros, então deputado estadual, usou o retrato feito ali no material impresso da campanha que o elegeu prefeito de São Paulo em 1953. Hoje, é contado quase como uma anedota o primeiro encontro dos dois, em que Flieg, meticuloso, escovou o terno do futuro presidente, salpicado de caspa.

Ao lado do trabalho na indústria, no comércio e na publicidade, há uma produção específica de que Flieg gostava imensamente: calendários produzidos para empresas como Pirelli e Brown Boveri, realizados em cidades como Sabará e Paraty. As fotos em Sabará acabaram rendendo um outro trabalho, o álbum Viagem a Ouro Preto (1971). Autora do livro, a escritora Lucia Miguel de Almeida viu as imagens da cidade mineira reguistradas por Flieg e insistiu com a editora para trocar as fotografias inicialmente previstas para sua obra. Viagem a Ouro Preto, encontrável em sebos, traz 32 imagens de Flieg.

O IMS lançou três publicações relacionadas à obra de Flieg: Flieg fotógrafo. Indústria, design, publicidade, arquitetura e arte na obra de Hans Gunter Flieg 1940-1980, Modernidades fotográficas: 1940-1964A viagem das carrancas.


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