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A escolha impossível

17 de maio de 2018

Entre 17 e 27 de maio, no IMS Paulista, e 26 e 31 de maio, no IMS Rio, acontece a mostra Carta Branca, com nove filmes escolhidos a dedo pelo teórico e crítico de cinema Ismail Xavier, que aqui apresenta seus critérios de seleção.

 

Como responder a esta generosa Carta Branca? Que filmes escolher?

Minha decisão foi compor uma seleção de filmes marcantes na minha formação de cinéfilo e/ou na minha vida de professor. São obras a que retornei com prazer ao longo dos anos, companheiras de viagem pelas quais tenho especial apreço. Não se trata de uma escolha ditada apenas pela qualidade estética e pelo interesse temático, e está descartada a ideia de uma lista dos “melhores filmes”. Vale aqui o painel montado a partir do que saltou à memória e depois se ajustou em desempates a fórceps para chegar ao formato da Mostra.

Entre contemplar uma gama bastante ampla, seja de contextos nacionais, modos de produção, movimentos estéticos, cineastas e períodos históricos, ou compor um conjunto mais restrito, assumi esta segunda opção, adotando duas premissas: incluir apenas filmes realizados no hemisfério norte, de um lado e de outro do Atlântico, e não escolher dois filmes do mesmo cineasta.

Neste sentido, o caso mais complicado foi o de Godard, pois de imediato prevaleceu o senso da enormidade de seu impacto, produzindo uma oscilação entre pelo menos dois filmes. Viver a vida (Vivre sa vie, 1962) é, em verdade, o primeiro na escala da emoção, presente quando revejo este filme decisivo na minha iniciação ao “cinema de arte”, como se dizia. Meus primeiros passos de cinéfilo se deram em grupo, quando o incentivo e o papo entre amigos foram ajudando a apurar a percepção e o gosto estético, junto com o hábito de leitura da crítica. Em 1965, fui sozinho a uma sessão no cine Bijou para assistir ao filme. Foi uma revelação, o prazer da descoberta e a empatia total que dividem minha iniciação em um antes e um depois. No entanto, o que está na Mostra é Duas ou três coisas que eu sei dela, o filme-ensaio em que o impacto se renovou e minhas referências se ampliaram, sendo a obra de Godard que mais revi em minhas aulas, sempre aprendendo algo mais e ensinando algo mais.

O elenco incluído na mostra deixa claro o quanto aquele primeiro jogo da memória evidencia a forte presença de uma cinefilia marcada pelo gosto cultivado no contato com a nouvelle vague, o cinema moderno italiano e os Cinemas Novos da América Latina, não excluída a atração pelo cinema que marcou o (meu) tempo da inocência – o western e, grosso modo, o “filme policial” ou thriller. Daí a inserção de duas obras-primas nitidamente “reflexivas”, O homem que matou o facínora e Um corpo que cai, numa escolha que expressa uma preferência minha pelos filmes que trazem em seu programa poético uma nítida reflexão sobre o próprio cinema.

 

Um corpo que cai (1958), de Alfred Hitchcock

 

Além dos filmes de John Ford e Hitchcock, que explicitam de forma notável os pressupostos estéticos e a relação com o espectador própria a um gênero clássico, selecionei notáveis exemplos de um metacinema movido pelo impulso de ruptura e inovação, articulado a uma posição política, como no filme-ensaio multifacetado de Godard e em Dziga Vertov, uma vez que Um homem com uma câmera, nesta rota dos “reflexivos”, salta aos olhos como o arquimodelo do filme sobre o próprio cinema e sua circunstância. (Sim, este é o único documentário. E por que não também o cinema-verdade de Jean Rouch ou o documentário poesia de Patricio Guzmán ou...?)

Antonioni, em O eclipse, constrói uma poética da imagem-tempo na qual o sentimento inexorável da duração se entrelaça com lampejos de “consagração do instante”, que logo de dissolve, evocando a célebre frase de Méliès em 1895 – “No cinema, as folhas se movem” – matriz da percepção de que o cinema captura o detalhe evanescente, porém essencial, que pode estar fora do jogo dramático, mas está em cena. Tomás Gutiérrez Alea, em Memórias do subdesenvolvimento, comenta a conjuntura política cubana dos anos 1960 a partir de um olhar oblíquo e uma vivência peculiar do tempo, atravessada pelo diálogo com Antonioni na atenção ao revelador descompasso entre o protagonista e seu entorno.

E há os mestres da ironia, Buñuel e Fassbinder. O primeiro, em O anjo exterminador, retoma o seu momento das rupturas de 1928-1931, mas em outra chave, nesta que é a mais surrealista de suas obras realizadas no México, orquestração de estranhamentos não mais pautada pela montagem agressiva que figura o desejo, mas pelo gradual movimento rumo à barbárie, dada a decomposição das máscaras e etiquetas de uma elite sem saída. O segundo retoma, em O casamento de Maria Braun, o “milagre alemão”, que se seguiu ao trauma da guerra, compondo uma cáustica paródia das chamadas alegorias de fundação nacional pelo percurso de uma notável Maria Braun, que não é a Maria de Metrópolis, de Fritz Lang (1927), nem a Braun companheira de Hitler.

Assombrado pelos traumas da guerra, se tece o encontro amoroso de Hiroshima mon amour, de Alain Resnais (com roteiro de Marguerite Duras), filme cujo tom recitativo e cuja poética das repetições instaurou uma reinvenção da palavra no cinema, tonificando a insistência da memória, o diálogo dos amantes e a evocação documental do massacre instantâneo em sua experiência limite.