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Antonio Fernando de Franceschi, o poeta gestor

14 de junho DE 2021 |
Antonio Fernando de Franceschi, poeta, crítico e primeiro diretor-superintendente do IMS. Foto de Juan Esteves

 

Antonio Fernando de Franceschi era um homem singular: com formação em Economia e em Filosofia, foi poeta reconhecido como um dos melhores de sua geração, com sete livros publicados e uma erudição que contemplava diversas áreas de conhecimento. Mas foi também um gestor rigoroso e detalhista, o empreendedor cultural que, junto com o embaixador Walther Moreira Salles, de quem era colaborador próximo, arquitetou a construção do Instituto Moreira Salles, do qual se tornaria, em 1992, o primeiro diretor-superintendente. Ele mesmo fazia questão de dizer que essas duas dimensões se sobrepunham.

"Se não houvesse o poeta, creio que não haveria o administrador cultural ou mesmo o intelectual. Não, pelo menos, se considerarmos o tipo de atuação que procurei imprimir ao Instituto Moreira Salles e às suas realizações. Mas o poeta é a minha personalidade de base e, nesse sentido, é o que vem primeiro. Ainda assim, a vertente “homem de ação” me interessa muito, é um lado “renascentista”, digamos, que procuro cultivar. Agora, se um ou outro permanecerá – sendo que um e outro são o mesmo – isso não sei responder."

A declaração acima foi dada a Claudio Willer, em entrevista publicada em março de 2005 na edição #44 da revista digital Agulha. Willer integrou, com Franceschi, a chamada Geração 60, grupo de poetas do qual também faziam parte Roberto Piva (1937-2010), Jorge Mautner e Rodrigo de Haro, entre outros, e que despontou na São Paulo do finzinho dos anos 1950. Agora, pouco tempo depois da morte de Franceschi, em 31 de maio, aos 79 anos, pode-se dizer: os dois, poeta e gestor cultural, certamente permanecerão. O primeiro, como autor premiado – Tarde revelada, de 1985, levou o Jabuti de Revelação de Autor; Caminho das águas, de 1987, o Jabuti de Poesia e o prêmio da APCA, e Sal (1989), o prêmio Cassiano Ricardo. O segundo, como parte indelével e fundamental da história do IMS.

"É muito simples: sem o Franceschi, o IMS não existiria", atesta João Moreira Salles. "Não este IMS. A ideia de um instituto com as nossas características – uma instituição dedicada a produzir conhecimento e a estimular uma visão crítica do país a partir de seus arquivos visuais e sonoros –, pois bem, essa ideia não nasceu pronta. Pelo contrário: ela sequer existia quando Franceschi e meu pai começaram a fértil conversa que resultaria no IMS. Um dos talentos de meu pai era delegar, e foi o que ele fez. Vá em frente, Franceschi, e Franceschi foi."

João observa que a criação se deu de forma inusitada para um empreendimento de tamanho porte. "O instituto foi construído durante o caminho, não antes, o que nem sempre é prudente. Processos assim costumam ser cheios de armadilhas – a do improviso, da dispersão, do risco orçamentário. Franceschi evitou todas elas e para mim não está muito claro como conseguiu. O que sei é que o prédio foi se esclarecendo à medida que a estrutura subia, de modo que a sua coerência, que hoje parece tão evidente, só existe retrospectivamente. Isso exige um baita arquiteto e um baita engenheiro. Nando, como eu o chamava, foi ambos."

Na mesma entrevista a Claudio Willer, Franceschi recorda a gênese do instituto. Acompanhava o pai de João, Walther Moreira Salles, numa viagem a Poços de Caldas, em 1989, onde o embaixador receberia o título de cidadão honorário da cidade onde passara a adolescência. Enquanto o avião taxiava no aeroporto, Franceschi relatou um episódio ocorrido meses antes, quando, em viagem à mesma cidade em companhia do jornalista Luiz Nassif, que fazia uma série de entrevistas com Antonio Candido (1918-2017), souberam que a residência da família do professor na cidade seria vendida. Nassif e Franceschi saíram de lá animados com a perspectiva de sustar o negócio já apalavrado e transformar a casa num centro de estudos dedicado à obra do grande crítico e ensaísta. Mas a tentativa não vingou. Franceschi conta a reação do embaixador:

"Afundado na poltrona, sem pressa de desembarcar, ouviu com atenção e, ao final, comentou:
–  Que boa ideia. Pena não ter dado certo. Por que não aproveitamos o tempo que nos resta antes do almoço? Vamos procurar um bom lugar para instalar um centro cultural na cidade.
Em outubro do mesmo ano adquirimos o Chalé Christiano Osório, uma construção de 1896 de grande importância para o patrimônio arquitetônico de Poços de Caldas, que foi inteiramente restaurada. Ao lado dela, implantamos um moderno centro expositivo, unindo harmonicamente o antigo com o novo. Assim nasceu o primeiro centro cultural do Instituto Moreira Salles, em cujo Conselho Consultivo temos orgulho de contar, desde o início, com a presença do professor Antonio Candido."

Diretores e conselheiros do Instituto Moreiras Salles. Da esquerda para a direita, em pé: João Moreira Salles, Fernando Moreira Salles, Antonio Fernando De Franceschi e Gabriel Jorge Ferreira. Sentados: Pérsio Arida, Jurandir Ferreira, Francisco Iglésias, Antonio Candido de Mello e Souza, Walther Moreira Salles e Otto Lara Resende. Poços de Caldas, 8 de agosto de 1992. Arquivo Walther Moreira Salles/ Acervo IMS

 

Franceschi não só plantou a semente, germinada em 1992, com a inauguração do IMS em Poços de Caldas (à época, Casa de Cultura Poços de Caldas). Acompanhou todas as etapas, tornando-se, por 16 anos, seu jardineiro mais fiel. Implementou as sedes de São Paulo em Higienópolis (1996), e Belo Horizonte (em 1997, mas cujas atividades foram encerradas em 2009) e a transformação da residência dos Moreira Salles, na Gávea, na casa carioca do instituto, aberta ao público em 1999. Também foi dele a iniciativa de arrematar em leilão um terreno num dos locais mais icônicos de São Paulo, onde seria mais tarde erguido o IMS Paulista, inaugurado em 2017.

"Deve-se isso a ele, um certo tipo de visão", diz Flavio Pinheiro, que o sucedeu, em 2008, como diretor-superintendente, ocupando o cargo até 2020 (desde então, cabe a Marcelo Mattos Araújo a gestão do IMS). Flavio Pinheiro conheceu seu antecessor muito antes disso, em meados dos anos 1970. Era editor assistente da revista Exame, e Franceschi intermediou o contato para uma reportagem de capa com o embaixador sobre mudanças implementadas no Unibanco. Flávio lembra-se do "cara de fala muito amena, um poeta, um homem de grande sensibilidade". O que viria a se confirmar no processo sucessório, em 2008. "Ele foi muito generoso e transparente, instalou uma mesa para mim dentro da sua sala e conversou muito comigo sobre o instituto, realçando o que achava mais importante. Devo muito a ele essa gentileza, essa maneira amável de agir."

Flavio pontua ainda as imensas contribuições ao IMS. "É da época dele a vinda de acervos que são os pilares do instituto” diz, citando os de Marc Ferrez, Marcel Gautherot, José Medeiros e Maureen Bisilliat, na fotografia, de Ana Cristina Cesar, Otto Lara Resende, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, em literatura, e ainda as coleções de música de Humberto Franceschi e José Ramos Tinhorão. "Depois disso, o instituto recebeu muitos outros acervos, por aquisição ou doação, mas esses foram seminais."

Walther Moreira Salles, Francisco Iglésias, Fernando Moreira Salles e Antônio Fernando de Franceschi, em foto de autor não identificado, na década de 1990,  possivelmente em uma reunião do Conselho do IMS, em São Paulo. Acervo Otto Lara Resende/ Instituto Moreira Salles

 

Diretora do IMS Rio desde sua inauguração, em 1999, Beth Pessoa trabalhou ativamente com Franceschi na instalação da unidade carioca, e lembra como ele não deixava passar nenhum detalhe, "da marcenaria ao cardápio do restaurante". "Não temos mais aquela estrutura enxuta da época", diz Beth, "muita coisa mudou, mas a busca pela excelência, pelos bons serviços, isso foi implementado pelo Franceschi, que tinha um senso estético apuradíssimo e controle sobre absolutamente tudo. Ele, sem dúvida, deu a cara do instituto."

Coordenador de Fotografia do IMS, Sergio Burgi destaca a facilidade com que Franceschi se movimentava pelas diversas áreas de atuação. Naquele momento em que a estrutura era muito pequena, ele mesmo aprovava pessoalmente cada projeto, e ainda respondia pela curadoria de artes visuais, área de que gostava muito.

"Ele era aquela pessoa de terno e gravata à frente de um projeto grande, mas nunca deixou de ser um literato de círculos alternativos. Talvez, por ter esse perfil, produziu coisas excepcionais à frente do instituto. Tinha a clareza do que era o instituto e o seu potencial a médio e longo prazos. Era muito atencioso, afetivo, mas mantinha necessariamente um rigor, próprio do cargo de direção. Preocupava-se muito com os processos, tanto quanto com os resultados, e foi construindo uma grande obra."

O fotógrafo Juan Esteves, autor do belo retrato no início deste texto, realizado a pedido do próprio Franceschi como material de divulgação de seus livros, sentiu de perto o interesse com o processo e a acuidade de cada etapa do trabalho. Em 2004, quando o IMS realizou a exposição São Paulo, 450 anos no Sesi (o espaço do instituto em Higienópolis, na era pré Paulista, só comportava mostras mais modestas em tamanho), Franceschi o convidou para criar um trabalho que refletisse a cidade à noite, sua profusão de luzes. A concepção da obra – um totem de seis metros de altura com paredes em backlight onde se via um patchwork de quase 400 fotografias –, foi nascendo em estimulantes e incansáveis conversas dos dois. "Ele pensava bastante, tinha muitas ideias, discutia, se envolvia diretamente", conta Esteves.

O envolvimento se dava em todas as esferas, da gestão do instituto à negociação dos acervos, da curadoria de artes à edição de livros e catálogos. Sempre muito discreto, como pontuam todos que com ele trabalharam. Talvez por sua trajetória como poeta e sua amizade com escritores, Franceschi tinha grande afinidade com o mundo das letras. É de sua lavra um dos projetos de maior prestígio no instituto: os Cadernos de Literatura Brasileira, produzidos a partir de 1996, com 29 edições que contemplam a obra de nomes como Raduan Nassar, João Ubaldo Ribeiro, Ferreira Gullar, Mario Quintana e Ariano Suassuna.  Também reeditou em 2000 um clássico da poesia paulistana da sua geração, publicado originalmente em 1963 por Massao Ohno (editor responsável por batizar essa geração de "Novíssimos") e esgotado pouco depois: Paranoia, de Roberto Piva, "uma visão alucinatória de São Paulo", nas palavras do próprio autor, com ilustrações do artista visual Wesley Duke Lee.

"Ele relançar o Paranoia foi algo impactante, inovador. Mudou o modo de ler Roberto Piva", observa Claudio Willer, que arrisca uma tese para a produção poética do amigo, "neoclássica, com algo de objetivista, com extremo apuro formal", distante da "pegada beat-surreal, e fortemente anarquista" dele, Piva e outros do grupo: "Diante do caos do mundo, a resposta dele era a transcendência e o equilíbrio através da poesia", diz. O documentário Uma outra cidade (2000), de Ugo Giorgetti, retrata bem os anos de formação de Franceschi e seus amigos poetas numa São Paulo já feérica, mas ainda civilizada, sem as multidões que caminham hoje por suas avenidas. A cena inicial do filme é o lançamento de Paranoia no IMS da Rua Piauí, partindo dali para as histórias ocorridas quatro décadas antes.

O próprio Franceschi explica no filme a permanência da relação, que, depreende-se de sua fala, norteou o seu percurso – seja como poeta ou como administrador cultural:

"Nós nunca tivemos excludências de natureza ideológica, era um grupo onde existem monarquistas como o Wesley, o Piva, e existem marxistas na outra ponta. Eu acho que a extrema liberdade com que nós soubemos conduzir as nossas relações entre pessoas portanto, tinha um outro cimento, que era a afetividade. A marca d'água desse grupo é que a vida foi uma experiência feliz. Foi bom ter vivido, foi bom ter sabido olhar a vida, por esse modo amplo, variado. Que modo é esse? Como nós chamamos esse modo? O modo generoso."

Amigo de Franceschi por mais de seis décadas, Ugo Giorgetti devolveu a generosidade ao escrever sobre ele em sua coluna no blog Ultrajanos, poucos dias após a sua morte. "Daquele jovem Nando guardo a lembrança da inteligência, do rigor intelectual, do caminho próprio que trilhava, dando muita atenção também ao que vinha de fora do circuito oficial do pensamento", diz. E recorda os almoços periódicos, "rituais alegres", em que "Nando era sempre o mais animado, o mais sentimental, o mais carinhoso e efusivo. Desses almoços sobrou para mim a imagem do Nando amigo incondicional, generoso com seus velhos companheiros de outros tempos, como provou durante sua longa amizade com Roberto Piva, por exemplo. Não era sem motivo que Piva, dado a arroubos aristocráticos e a distribuir títulos de nobreza entre os amigos, colocasse Nando acima de todos, lhe dando o título de Príncipe. E o Piva, como sempre, tinha razão. Antonio Fernando de Franceschi era um daqueles sofisticados, elegantes, talentosos e complexos príncipes do Renascimento."